Artigo de Fernando Gabeira
Há sempre um momento para travar a batalha decisiva. O
Brasil está diante dele. Durante o luto nacional, quando ainda se chorava a
morte das vítimas do acidente com o avião da Chapecoense, os investigados
decidiram criar uma lei para controlar juízes e procuradores. Seria o único
país do mundo a tolerar essa afronta. No meio da semana, a equipe da Lava-Jato
ameaçou renunciar se a lei da intimidação for sancionada. Mas é hora de
resistir. Mais cedo ou mais tarde, viria a mãe de todas as batalhas. As tardes
de domingo talvez não sejam mais as mesmas. Será preciso gritar e muito. Mas a
resistência aos bondes de investigados, que redigem leis e defendem a
corrupção, não deve se limitar apenas à presença nas ruas.
A Justiça brasileira foi atingida em cheio. Ela pode,
simplesmente, declarar inconstitucional a lei da intimidação, porque os
deputados legislaram em causa própria pois são investigados. Isso também não
basta. Enquanto não se julgarem os processos de todos os políticos no Supremo,
vão tentar criar leis que lhes dê a blindagem necessária para sobreviver.
Também para eles é uma questão de vida e morte.
Por isso a batalha é interessante. Se Renan Calheiros e sua
tese de controlar as investigações prevalecerem, então terão matado não só a
Lava-Jato, mas a própria esperança de decência na vida pública. O país entraria
numa estranha ditadura. Os bandidos teriam vencido e ditariam as leis. Só nos
restaria a resistência. Para alguns de nós não é novidade ser jogado numa luta
de vida ou morte.
A novidade é que agora são milhões de pessoas a resistir.
Eles não darão trégua nem esquecerão em 2018 quem são os deputados que
trabalham contra elas. Se não fosse a profunda crise econômica até que seria
divertido derrotá-los, continuadamente, até que fossem varridos do mapa
político.
Mas a crise não dá tréguas, o presidente é fraco, todo o
governo pode ser levado de cambulhada nessa aventura final de sua base
parlamentar junto com a oposição: nesse caso, lutam por uma causa comum. Sempre
de madrugada, quando o nível de estupidez é mais alto, eles simplesmente se
voltam para o país e dizem: vamos fazer as regras do jogo para nos blindar da
Justiça. Enquanto todos choravam a morte dos jogadores, eles resolveram não
apenas desrespeitar o luto mas se aproveitar dele para dizer: de agora em
diante quem manda somos nós.
Certamente, deve ter havido alguém para lembrar que o
momento econômico é difícil, que havia um luto nacional, mas ainda assim
partiram para o ataque contra as pessoas que se cansaram de ser roubadas. O que
passa na cabeça de Renan Calheiros para ser o general desse exército? Por baixo
de todos os cálculos, há um desespero, o medo da hora que chega.
Só o desespero em alguns e a profunda ignorância política
podem aproveitar o momento de luto para golpear a Justiça, as pessoas que
esperam um país melhor. Que tipo de expectativa têm neste momento? Que tipo de
simpatia pode trazer a defesa da corrupção? Sempre achei que havia uma
tendência suicida no Congresso. Desta vez, ela foi longe demais: eles querem se
suicidar e não nos deixam outro caminho a não ser ajudá-los. É um gesto de
compaixão bani-los da vida pública.
A insensatez chegou a um ponto que eles podem se machucar
muito e machucar os outros, jogar o país numa situação desesperadora. Será
preciso muito esforço para evitar a violência. As ruas vão se tornar um inferno
permanente para eles. Será que não passou pela cabeça deles que teriam de
prestar contas, circular, falar com os vizinhos, enfim, ter uma vida normal?
Eles escolheram confronto e lançaram um desafio a cada um de
nós. De uma certa maneira, depois de tantos roubos, tentam nos roubar uma ideia
do Brasil, arrasar com a autoestima nacional. Pelo menos nos deram uma nova
oportunidade de estarmos juntos, protestar, mostrar para eles, entre panelaços
e manifestações, que o Brasil não se curva.
Assim que o luto se abrandar e todos se derem conta da
traição que sofreram na madrugada, estaremos em condições de dar a batalha
decisiva. O primeiro front essencial seria este: julgar todos os inquéritos
sobre os deputados e senadores que votaram pela lei da intimidação. Legislaram
em causa própria.
Assim como Eduardo Cunha, Renan está lutando sua última
batalha enlouquecido. Ele precisa perdê-la logo. Mesmo na sua loucura, talvez
saibam que foram longe demais. Vão se encontrar no Olimpo das celas de
Curitiba. Ali outros delírios de poder e fortuna também acharam seu espaço.
A equipe da Lava-Jato não pode se demitir. A História não é
uma repartição, o impacto do trabalho deles é um patrimônio da sociedade. É só
ter um pouco de paciência que a própria sociedade vai se mover. Não ficará
pedra sobre pedra, embora seja precisa tirá-las com cuidado para evitar grandes
desmoronamentos.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 04/12/2016
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