terça-feira, 27 de dezembro de 2016

PARA NÃO FALAR DE ÁRVORES

Dorrit Harazim, O Globo
Apesar do título acima, o texto não vai abordar a natureza, o meio ambiente ou correlatos. Tampouco pretende detonar os faiscantes pinheiros de plástico natalinos, uma vez que hoje é 25 de dezembro. Feliz Natal para quem tem algo a festejar, portanto.
O assunto é mais pesado. "Aos que vão nascer", o célebre poema de Bertold Brecht escrito em 1939, procurou despertar da cegueira nazista a sociedade alemã às vésperas da II Guerra. Basta citar as duas primeiras estrofes da obra, em tradução de Paulo César de Souza, para devolver-lhe atualidade num mundo  inteiramente diverso ao de 77 anos atrás:
"É verdade, eu vivo em  tempos negros.
Palavra inocente é tolice.
Uma testa sem rugas indica insensibilidade.
Aquele que ri, apenas não recebeu ainda a terrível notícia.
Que tempos são esses, em que falar de árvores é quase um crime pois  implica  silenciar  sobre  tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranquilo.
Não  está mais ao alcance de  seus amigos
Necessitados?"
Os países e sociedades que se despedem deste indigesto ano de 2016 estão à deriva. Em gestação está uma nova (des)ordem mundial de características inquietantes. A partir de  janeiro o calouro Donald Trump assume o comando da Casa Branca e do maior arsenal nuclear do planeta, que ele pretende  incrementar. "Que haja uma corrida armamentista. Iremos superar a todos", trompeteou o futuro presidente esta semana.
Trump admira líderes autoritários e acredita ser tão sagaz quanto o veterano  rapozão  russo Vladimir Putin. Tem pretensões também de mostrar à China de Xi Jinping que agora a "América voltará a ser grande". Embora sejam  radicalmente diferentes no estilo,  índole, agenda política ou na  sociedade que  representam, os três  líderes  têm em comum a exaltação da nação. Perigo à vista para 2017.
"Infeliz a terra que não tem heróis", proclama o discípulo Andrea em "A vida de Galileo", de Brecht, escrito também sob o Terceiro Reich, e que recebe do Cientista a devida resposta: "Infeliz é a terra que precisa de heróis".
Como já escreveu o historiador briComo já escreveu o historiador britânico Timothy Garton Ash, professor de História Europeia na Universidade de Oxford,  já virou  truísmo afirmar que heróis costumam  levar nações à guerra enquanto paz e democracia são preservadas por uma cidadania bem  informada e participante. Paz e democracia exigem, sobretudo, líderes avessos a populismos, norteados primariamente pelo respeito ao estado de direito, mesmo quando as  leis forem eleitoralmente inconvenientes.
A Europa  tem há onze anos um  líder mundial de uma  raça quase em extinção. Ou tinha, até a noite da segunda-feira - a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. Firme, poderosa a bordo de economia nacional sempre robusta, e até agora blindada contra as concessões eleitoreiras que derrubaram seus vizinhos no continente.
Mas a partir do momento em que o tunisiano Anis Amri embicou seu caminhão da morte contra os festeiros na praça Breitscheidt, em Berlim, e conseguiu escapulir por três dias cruzando duas fronteiras até ser morto em Milão, a Europa democrática e liberal pode ter começado a perder seu principal eixo. Muito dependerá do resultado das eleições gerais de  setembro próximo na Alemanha.
Se Merkel vencer pela quarta vez, terá continuidade a difícil construção de uma  sociedade que  ambiciona uma  forma de  viver "livre, unida e aberta", como propõe a chanceler.
A  firmeza de Merkel sob pressão é conhecida. Sua alergia a nacionalismos também, tanto quanto  seu  inconfundível penteado capacete. Ela sabe que os serviços de  inteligência do país escancararam falhas e deficiências no atentado de Berlim e urge aparelhar-se. Também sabe que ao abrir as fronteiras para mais de um milhão de refugiados em 2015, ela submeteu a sociedade alemã a um teste forçado.
Em momento algum, contudo, a estadista cogitou pronunciar a  frase-chavão "Estamos em guerra", à qual sucumbiram tantos líderes do Primeiro Mundo afetados por atentados terroristas de grande porte, com as consequências que se conhece.
Declarar guerra ao terror é tão retórico quanto declarar guerra à criminalidade ou proclamar "vitória" no "Dia D" da tomada do Morro do Alemão pelas tropas de choque no Rio.
Merkel promete melhor combate aos terroristas e mais proteção à população, sem  flexibilizar demais as  liberdades individuais.
A chanceler sabe que a meta do terrorista, em sua essência, é aterrorizar matando, e não tomar o poder. Merkel  também sabe melhor do que seus pares europeus e americanos que o inimigo à espreita de falhas da democracia liberal, pronto para assumir o poder, é outro: algum líder xenófobo populista.
Candidatos não faltam.
E para concluir, um pouco mais de Brecht, em tom mais otimista:
"General, o homem é útil.
Ele pode voar e ele pode matar.
Mas ele tem um defeito: ele pode pensar."
Dorrit Harazim é jornalista 
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