Da ISTOÉ
O 45º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assume o
cargo mais cobiçado da política internacional na próxima sexta-feira 20. Ele
ainda nem chegou ao Salão Oval da Casa Branca e suas medidas populistas e
reações exacerbadas já assustam o mundo. Nas semanas que antecederam a cerimônia
da posse, Trump se meteu em várias confusões: brigou com a imprensa por conta
de um suposto dossiê relatando negócios escusos e orgias com prostitutas;
xingou a atriz Meryl Streep pelas críticas endereçadas a ele durante um
discurso na cerimônia de entrega do prêmio Globo de Ouro; se contradisse a
respeito de ataques feitos por hackers russos à campanha eleitoral adversária
e, se não bastasse, começou um incidente diplomático com China e Taiwan. Tudo
isso, repetindo, antes de ocupar a cadeira presidencial.
Sob intenso bombardeio daqueles contrários às suas posturas,
Trump comparou os tempos atuais com a Alemanha nazista. Nessa farsa, os cínicos
diriam, quem faz o papel de Adolf Hitler é o próprio Trump. Devido à sua
xenofobia e ao seu discurso inflamado – e com a apreensão de quem sabe que
muito mais está por vir – líderes globais e cidadãos comuns se perguntam: e
agora? “Grandes, grandes notícias vão ser anunciadas nas próximas semanas”,
afirmou Trump, com seu linguajar característico, durante entrevista coletiva
para jornalistas na quarta-feira 11. “Na inauguração, vamos fazer um belo
evento. Temos grande talento, tremendo talento.”
CHANTAGEM
No mesmo dia em que Barack Obama se despedia da presidência
após cumprir dois mandatos (leia no quadro), Trump realizou uma audiência para
apresentar o governo e se defender de acusações que haviam sido publicadas na
véspera. De acordo com a imprensa americana, um relatório atribuído a um
ex-espião do serviço secreto britânico diz que a Rússia juntou dados comprometedores
sobre Trump com o objetivo de chantagear o empresário. Cópias circularam em
Washington durante a campanha do ano passado, e, ainda segundo a mídia local,
um resumo de duas páginas do dossiê foi dada ao magnata e a Obama. O documento
afirma que o presidente eleito aparece em um vídeo de sexo com prostitutas
russas em um hotel de Moscou. Relata ainda que sua empresa fechou contratos na
China e em países emergentes por meio de pagamento de propinas. Como as
informações não foram confirmadas, sua publicação causou controvérsia nos meios
de comunicação dos Estados Unidos. A rede CNN e o site Buzzfeed, que divulgaram
a notícia, foram ameaçados de banimento da cobertura da Casa Branca e
classificados como “monte de lixo” durante a coletiva. “As agências de inteligência
nunca deveriam ter deixado essas notícias falsas vazarem”, disse Trump horas
antes, em seu Twitter. “Estamos vivendo na Alemanha nazista?”
A difusão do conteúdo, verdadeiro ou não, reviveu velhas
desconfianças sobre a relação entre Trump e a Rússia. Semanas atrás, as
principais agências de inteligência dos Estados Unidos, como a CIA, o FBI e a
NSA (National Security Agency), certificam que hackers russos invadiram o
comitê de campanha dos democratas e liberaram informações comprometedoras da
rival, Hillary Clinton. Trump passou todo esse tempo negando que o ataque havia
acontecido, mas mudou de tática na entrevista coletiva, quando admitiu “achar”
que a Rússia interferiu no pleito, sem dar mais detalhes nem reconhecer que a
manobra o beneficiou diretamente. Com a posse de Trump, o diálogo entre os
países, que não ia bem com Obama e não mudaria com Hillary, realmente será
outro. A mudança afetará principalmente o futuro do conflito na Síria (do qual
os russos participam ativamente) e a expansão do poder do Kremlin sobre seus
vizinhos, em regiões como a Ucrânia e a Crimeia. “Se Putin gosta de Donald
Trump”, se gabou o americano na entrevista, “vejam só, pessoal, isso é uma
vantagem, não uma desvantagem.”
Dias antes dessas declarações, o estilo boquirroto do
presidente eleito ajudou a armar uma briga com um dos maiores responsáveis pela
influência cultural dos Estados Unidos no mundo: Hollywood. Em seu discurso no
Globo de Ouro, a atriz Meryl Streep disse que a indústria do cinema é
construída com base na diversidade e criticou a imitação vexatória que Trump
fez de um jornalista com deficiência, comparando-o com um valentão de escola
que humilha aqueles sem condições de revide. Como líder da nação mais poderosa
do mundo, esse é o tipo de opinião contrária com a qual o empresário deveria
saber lidar. Sua resposta, porém, além de ser o oposto do que se espera de um
chefe de estado, acaba referendando a posição de Meryl Streep. Ele chamou a
intérprete de “superestimada” e alegou que ela seria “amante” de Hillary
Clinton. A comunidade do cinema e da TV ficou em polvorosa e as redes sociais
ficaram repletas de críticas a Trump. Nada dá a entender que seu estilo vá
mudar, nem que ele deixará de espalhar ódio pelo Twitter, como tem feito até
hoje. Pelo contrário, seus apoiadores aplaudem o político que fala o que pensa
e que não está amarrado pelo politicamente correto. “Como muitos populistas,
Trump enxerga críticas como ofensas pessoais”, afirma Oliver Stuenkel, membro
do Instituto Global de Políticas Públicas, em Berlim. “A discussão é o que
torna as decisões de um governo melhores, e ele está se privando disso.” Esse
temperamento agressivo pode prejudicar sua própria administração.
Além de causar estrago no âmbito doméstico, as afirmações
intempestivas de Trump podem queimar relações dos Estados Unidos com países
aliados. E até fazer com que o mandatário seja manipulado por adversários que
conhecem seu comportamento. O presidente venezuelano Nicolás Maduro, por exemplo,
tem tudo a ganhar com ataques vindos de Trump, através dos quais poderá
fortalecer a narrativa de que seus problemas são culpa dos “yankees”, como
sustentava Hugo Chavez. Uma prévia do que pode estar por vir na era Trump foi o
incidente diplomático iniciado com os chineses depois que o presidente eleito
dos EUA atendeu à ligação da mandatária de Taiwan. O regime comunista da China
não aceita que outras nações reconheçam a soberania da ilha. Por isso, o
contato de quase todo o mundo com o território se dá de maneira não oficial. No
entanto, o empresário confessou que foi parabenizado por telefone pela
taiwanesa, o que despertou a ira de Pequim.
O Ministério do Exterior da China emitiu nota de protesto
depois de a conversa vir à tona. “Deve ser levado em conta que há apenas uma
China, e Taiwan é parte inalienável da China”, escreveu o porta-voz Geng
Shuang. “O governo da República Popular da China é o único governo legítimo que
representa a China.”
FANFARRONICE
O episódio pode ser tanto fruto da ingenuidade como um
cálculo político de Trump. Isso porque, ao lado do México, os chineses são
pintados pelo presidente como os grandes vilões da economia dos Estados Unidos.
Em sua campanha, ele prometeu combater sem descanso as importações dos dois
países para gerar mais empregos em solo americano. O magnata pode ter criado o
imbróglio justamente para disfarçar o fato de que a maior parte de suas
declarações não passa de fanfarronice. Em primeiro lugar, porque a maior
beneficiária da promessa de Trump de sair do Acordo Transpacífico é justamente
a China, que estará livre para expandir sua influência no leste asiático. O
mesmo vale para o isolacionismo do presidente eleito em relação à África e
América Latina, territórios para onde os chineses poderão crescer. Em segundo
lugar, porque as economias das duas nações são profundamente conectadas. Se,
por um lado, Washington importa toneladas e toneladas de componentes chineses,
por outro, Pequim é o maior portador de títulos da dívida pública americana. Um
embate entre as duas potências afetaria drasticamente o mundo, mas os grandes
prejudicados seriam justamente os principais envolvidos. “Temos que ver se essa
briga vai ou não existir”, diz Ricardo Mendes, responsável pelo escritório em
Miami da consultoria internacional Prospectiva. “Os chineses são muito
pragmáticos, aguentam essa retórica. E os maiores perdedores disso seria os
próprios americanos.”
No âmbito doméstico, o risco é maior para a população mais
vulnerável. “Quem vai sofrer mais são os mais pobres”, afirma Geraldo Zahran,
professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Para ele, o cenário que se desenha é de “estudantes
endividados, minorias perseguidas e imigrantes deportados”. Um dos exemplos de
como o novo governo pode piorar a vida dos mais humildes está personificada no
Procurador-Geral de Trump, Jeff Sessions. Ele enfrentou diversas acusações de
racismo no passado, e sua sabatina no Senado contou até com manifestantes
contrários vestidos de membros do grupo supremacista branco Ku Klux Klan. Em
1986, Sessions foi recusado para uma vaga de juiz federal sob a justificativa
de que era muito retrógrado para os valores americanos. Em 2017, ele será
provavelmente aceito pela maioria dos senadores, majoritariamente republicanos
aliados. O Senado também referendará a nomeação de Rex Tillerson, presidente da
companhia petrolífera ExxonMobil, para o cargo de secretário de Estado,
responsável pelas relações exteriores dos Estados Unidos. Apesar de o
empresário ter negócios na Rússia, o que implica em conflito de interesses, ele
é dado como certo no cargo. A única nomeação que corre algum risco de ser
barrada é a de Jared Kushner, genro do presidente eleito e escolhido como
assessor sênior da Casa Branca. Sua aprovação não passa pelo Congresso, mas
pode ser vetada pela lei contra o nepotismo. Mesmo assim, a jurisprudência
americana dá brechas para que ele seja efetivado. No fim das contas, Trump
levará com ele essas e outras figuras ligadas ao que há de mais obscurantista nos
Estados Unidos. São eles que vão definir as pequenas e grandes questões da
política americana daqui para frente.
ISOLAMENTO
Ao menos o muro separando Estados Unidos do México, promessa
mais emblemática de Trump, não deverá ser erguido. Apesar de o presidente
eleito ter confirmado na coletiva de imprensa da quarta-feira 11 que a
construção está de pé e que pretende enviar a conta para os mexicanos, os
custos superiores a US$ 25 bilhões e as dificuldades operacionais de um projeto
desse porte inviabilizam a obra. Para não desagradar seus eleitores, no
entanto, o empresário deve recorrer a uma barreira policial, ao invés de
física, com endurecimento de leis de imigração e aumento do aparato de
segurança das fronteiras. O mesmo se dá em relação à reforma de saúde do
Obamacare. A promessa inicial era acabar com o projeto, mas as 20 milhões de
pessoas atendidas pela medida inviabilizam sua dissolução. Trump prometeu
substituir o programa, mas não explicou exatamente pelo quê. “Em relação ao
muro, em relação ao Obamacare, em relação à política internacional, a retórica
de Trump é sempre mais forte do que a prática”, diz Ricardo Mendes, da
Prospectiva.
Como homem mais poderoso do mundo, o presidente dos Estados
Unidos serve de exemplo para os líderes de outros países. Como empresário que
é, vê o comando de uma nação como um balcão de negócios em que se deve buscar o
acordo mais vantajoso. Por esse lado, o magnata possui uma visão reducionista,
porém legítima, das responsabilidades do cargo que conquistou. “De grão em
grão, ele vai buscar vantagens pontuais. Mas não possui um grande plano de
mudanças”, afirma Zahran, da PUC-SP. No entanto, seu desprezo pelos valores e
pelas normas de conduta da democracia é um perigo não só para os americanos,
mas para todas as nações do mundo. Uma onda de populistas, oportunistas e
aventureiros vem conquistando espaço nos quatro cantos do mundo, inclusive no
Brasil. Eles já alcançaram vitórias eleitorais expressivas, como a saída do
Reino Unido da União Europeia. Em 2017, podem se elevar à posição mais alta de
países importantes como a França. “Os Estados Unidos são uma referência
cultural. Quando a coisa vai mal por lá, isso é ruim para todas as
democracias”, diz Stuenkel, do Instituto Global de Política Pública. O problema
é Trump, mas não só ele. O problema é também o que vem pela frente justamente
por causa dele.
As últimas DE TRUMP
As confusões que o novo presidente já arranjou
Dossiê secreto
A imprensa americana publicou um suposto relatório de
espionagem informando que a Rússia possui informações sobre negócios escusos do
presidente eleito e vídeos de orgias dele com prostitutas. O conteúdo, porém,
não foi confirmado
Briga com Hollywood
Criticado pela atriz Meryl Streep por conta de sua política
para imigrantes e de sua imitação vexatória de um jornalista com deficiência,
Trump referiu-se a ela como superestimada e disse que era amante da candidata
derrotada
Hillary Clinton
Espionagem da Rússia
Mesmo com as principais agências de inteligência americana
confirmando que hackers russos atacaram a campanha oposicionista do Partido
Democrata, o presidente eleito segue negando que a gestão de Vladimir Putin o
tenha beneficiado
Gafe com a China
O magnata recebeu uma ligação da presidente de Taiwan e
abriu uma crise diplomática com os chineses. O regime comunista considera o
país como parte de seu território e não tem relações com quem reconheça o
governo oficialmente
Nomeações suspeitas
Trump apontou o genro como assessor sênior da Casa Branca,
mas ato pode ser barrado pela lei contra o nepotismo. Indicações incluem também
empresário com conflito de interesses com a Rússia e procurador-geral acusado
de racismo
Herança dúbia
Barack Obama deixa posto com aprovação pública, mas também
lega poderes perigosos para Trump
Ao deixar a presidência dos Estados Unidos, Barack Obama não
precisará se preocupar com desemprego. O serviço de reprodução de música via
internet Spotify ofereceu ao americano a vaga de “presidente de playlists” após
o mandatário brincar que gostaria de um cargo na empresa. Num anúncio fictício
publicado online, a companhia escreveu que a experiência necessária era de pelo
menos oito anos no comando de uma nação importante e um prêmio Nobel da Paz.
Desde 2015, Obama compartilha no Spotify listas de suas músicas preferidas, que
incluem artistas como Bob Marley, Coldplay e Justin Timberlake. Em seu discurso
de despedida, na quarta-feira 11, o presidente afirmou que a democracia está ameaçada
e fez críticas veladas a políticas de Donald Trump , dizendo que é preciso
combater a discriminação. Na fala, Obama também chorou ao falar de sua família.
Com esses sinais, ele sai do posto com avaliação positiva e fama de líder
“gente boa”, mas a expansão que promoveu da autoridade do Executivo também
beneficiará seu rival e sucessor. Hoje, presidentes podem começar guerras sem a
aprovação do Congresso, ordenar ataques de drones no exterior sem acusação
formal e coletar informações de e-mails e telefonemas privados quase
livremente. Esse poder todo agora está nas mãos de Trump.
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