Artigo de Fernando Gabeira
A constrangedora mediocridade com que o governo respondeu
aos massacres no Norte não me surpreendeu. Num artigo que escrevi aqui jogava
minhas esperanças no debate entre as pessoas que reconhecem a urgência do tema.
Já existem muitas ideias sobre o que fazer com o sistema carcerário em crise.
Outras devem surgir. Mas o interesse social pode, pelo menos, levar o governo a
uma ação mais solidária em todos os níveis. Estancar o jogo de empurra, essa
irresistível tendência de lavar as mãos e jogar a culpa nos outros.
Por que Temer se interessaria pelo tema? Todos os outros
presidentes se esquivaram. O fracasso do sistema carcerário atravessa a
História da República. O livro de Myrian Sepúlveda dos Santos Os Porões da
República conta, por exemplo, a primeira tentativa brasileira de criar uma casa
correcional no Vale dos Dois Rios, na Ilha Grande. Ela trata apenas do período
entre 1894 a 1945. Mas é uma história dramática. Experiências em Fernando de
Noronha e em Clevelândia também são um roteiro do fracasso.
De um ponto de vista político, o sistema carcerário é um
abacaxi. Parece ser insolúvel e transita num espaço muito polarizado por
defensores e críticos dos direitos humanos.
O mais confortável para Temer era empurrar com a barriga,
como fizeram todos. E não percebeu que tudo isso poderia estourar na mão dele.
Enfim, contou com a passagem do tempo, como se a História fosse mesmo escrita
com empurrões de barriga.
Esta é a diferença que deveria mobilizar Temer: estourou nas
suas mãos.
O massacre em Manaus foi o episódio mais bárbaro de que ouvi
falar na história dos presídios brasileiros. A descrição do que aconteceu com
os mortos, feita por pessoas da própria família, é cheia de detalhes tão
macabros que diante deles a decapitação até parece um ato moderado.
O massacre me fez rever algumas ideias. Tinha tendência a
superestimar o trabalho de inteligência. Percebi ali que a minha visão era
parcial.
Tanto as autoridades do Amazonas como Temer sabiam da crise.
Em Manaus já se conhecia o plano de atacar o PCC e ele foi revelado por vários
relatórios da Polícia Federal, que realizou a Operação La Muralla e golpeou
profundamente a Família do Norte.
Mesmo sem saber o que se passava em cada presídio, Temer foi
informado sobre a guerra das organizações criminosas dentro e fora das cadeias.
Seu homem de inteligência, o general Sérgio Etchegoyen, reuniu-se com
parlamentares da Comissão de Segurança e relatou a possibilidade da guerra.
Dificilmente Etchegoyen deixaria de discutir o tema, em
primeiro lugar, com o próprio Temer. Talvez não soubesse apenas, como sabiam as
autoridades de lá, que a primeira batalha estava por acontecer em Manaus. É
outro problema típico da burocracia. Ela anuncia grandes sistemas de
inteligência integrados, chega a inaugurá-los, e nada acontece.
Em tempos de WhatsApp, era possível uma troca nacional
convergindo para um pequeno grupo de análise que mapearia possíveis conflitos,
orientaria transferências e outras medidas preventivas.
Temer está perdendo uma grande oportunidade de trilhar um
caminho que outros recusaram. No auge da crise viajou para Portugal, onde foi
ao enterro de Mário Soares. No fundo, está querendo dizer: não me envolvam
muito com crise carcerária, estou aflito para passar esta fase de emergência,
voltar a empurrar com a barriga, tratar dos temas que realmente me interessam.
Ele poderia ter-se reunido com parlamentares, mas não quis.
Os deputados da chamada bancada da bala estavam interessados. Nessas
circunstâncias, mesmo sem aceitar todas as suas premissas, os deputados desse
grupo são interlocutores válidos. A segurança é sua bandeira e alguns são
policiais experimentados.
Se fosse congressista, estaria discutindo com eles, pois o
massacre de Manaus e a crise que ele explicita requerem um esforço nacional.
Assim como é preciso superar a tendência de culpar uns aos outros, é preciso
deixar para trás os tempos do nós contra eles.
Alguns temas, como esse dos presídios, são de tal gravidade
que nos obrigam a reaprender a ideia de frente, do convívio entre posições
distintas na busca de um denominador comum. Isso não significa abrir mão das
próprias convicções. Apenas reconhecer que, num momento em que as organizações
criminosas entram em guerra entre si, a sociedade unida tem uma excelente
oportunidade para enfraquecê-las, dentro e fora das cadeias.
Pelo menos em tese, presidentes são pessoas que não deveriam
recuar diante de um grande problema nacional. Eles têm uma chance maior de
unificar a sociedade e apontar o caminho comum.
Mas, mesmo diante de uma grande ausência, como a de um líder
nacional, a sociedade, depois do massacre de Manaus, despertou para a
importância da reforma do sistema carcerário. Todos nós que trabalhamos nas
ruas conhecemos a miríade de posições sobre o tema. A diversidade não impede
soluções negociadas. O problema de segurança pública já é considerado pela
maioria um dos mais graves do País.
Mesmo antes de Manaus já havia também uma compreensão
crescente de que ruas e cadeias são relacionadas. A crise nos presídios
transformou as eleições maranhenses numa grande ameaça de caos.
Nos conflitos no Amazonas, os presos concentraram sua
energia em degolar e eviscerar seus inimigos. Ainda assim, fugiram 184. Com
ferramentas para derrubar paredes, armas longas, oito túneis construídos, eles
poderiam ter fugido em massa.
Com o surgimento do Estado Islâmico, também especialista em
decapitar, ficou claro, pela série de atentados, que para eles somos todos
iguais, não importa o que pensemos. Se somos iguais ante a barbárie, por que
não nos igualamos na tarefa de nos defendermos dela?
Artigo publicado no Estadão em 13/01/2017
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