Artigo de Fernando Gabeira
O Espírito Santo já teve mais presença na mídia nacional. No
passado havia correspondentes como Rogério Medeiros, do Jornal do Brasil, que
fez inúmeras reportagens sobre a histórica devastação da Mata Atlântica no
Espírito Santo. E revelou grandes personagens, como Augusto Ruschi, o homem que
amava o beija-flor, e o lendário desmatador Rainor Greco, que depois de
devastar a Mata Atlântica levou seu know-how para a Amazônia.
No fim de semana as notícias sobre a greve da Polícia
Militar (PM) me inquietaram. Na segunda-feira, no rádio, avaliei que esse
poderia ser o tema mais importante da semana. Anexei uma preocupação: o
fechamento das escolas e dos postos de vacinação. Acabara de voltar do Espírito
Santo, onde a morte dos macacos se ampliava e os primeiros casos de febre
amarela já se registravam na zona rural de Colatina. O Espírito Santo, dos
Estados limítrofes de Minas Gerais, é o mais vulnerável à febre amarela, por
ter menos gente vacinada.
Mas a onda de violência tornou-se algo mais assustador do
que a febre amarela. Assassinatos, saques, assaltos, tiroteio, tudo isso nos
relembra de como é tênue o limite para a barbárie, como é delicado o equilíbrio
em que nos movemos no Brasil, inclusive com nosso mundo político vivendo em
outro planeta.
Sempre defendi a ideia de que se investisse em segurança,
reconhecendo como é caro esse esforço, mesmo com algumas reduções de custos que
o uso da tecnologia possa trazer. A ideia é ter uma polícia bem treinada, bem
paga e respeitada pela sociedade. Até mesmo reverenciada quando um policial
morre em confronto com criminosos, algo que os movimentos de direitos humanos
ainda não interiorizaram.
A greve da Polícia Militar (PM) capixaba não foi a primeira.
Uso a palavra greve porque a encenação das famílias na porta dos quartéis era
apenas para construir uma realidade alternativa, como está em moda atualmente.
Houve greves em Pernambuco e na Bahia e a cada vez que elas ocorrem enfraquecem
os argumentos dos que gostariam de vê-los em melhor situação.
Todo policial militar, mesmo que não conheça a Constituição
no seu todo, é ensinado, ao ser admitido, sobre o que ela proíbe que ele faça.
O caos que o movimento dos policiais provocou no Espírito Santo é tão grave
que, em circunstâncias menos dramáticas que aquelas em que vivemos, valeria
considerá-los desertores e construir uma nova Polícia Militar.
Um dos efeitos negativos é a propagação. Em Minas Gerais, já
se anunciou na noite de terça-feira o boato de uma greve de PMs e bombeiros. Se
vingar, já é uma novidade não só inquietante, mas desapontadora: os bombeiros
são muito bem vistos pelo povo.
No Rio de Janeiro, os PMs estão em luta contra o governo
Pezão, que é um remanescente do grupo que assaltou e quebrou o Estado. Nesse
sentido, têm todo o respeito. Mas uma coisa é lutar contra o governo e outra,
contra a sociedade, desrespeitando a Constituição e expondo as cidades à
barbárie.
No Espírito Santo, um plano de austeridade econômica
equilibrou as contas, mas não teve a sensibilidade política que um planejamento
desse tipo precisa ter. Os PMs estão há quase quatro anos sem reajuste
salarial. E ali sua tarefa não é fácil. A quantidade de bandidos que tomou as
ruas é uma evidência da aspereza da missão.
No Rio de Janeiro o problema também é muito sério. O famoso
resgate econômico do governo federal está fazendo água, com negativas da Caixa
Econômica, do Banco do Brasil e da Advocacia-Geral da União. Falta também
aprová-lo na Assembleia Legislativa.
Há uma possibilidade de o governo não resistir à crise. Mas
aí coloco a segunda questão: uma simples troca de governo aquietaria os
protestos?
Num cenário tão confuso, em todas as áreas, em que as PMs
estão prestes a cruzar os braços, uma saída para a sociedade é a autodefesa.
Não me refiro a armas, mas a smartphones. Já começam a surgir aplicativos
mapeando tiroteios, indicando zonas perigosas. O próprio Exército, que tem sido
uma espécie de último recurso, talvez possa avançar nesse caminho. Uma coisa é
patrulhar uma cidade, outra é patrulhar conectado por milhares de cidadãos
também preocupados com a segurança. Os movimentos tornam-se mais econômicos e
precisos.
Da mesma forma, como no combate ao terrorismo na Europa, as
autoridades podem informar as pessoas por seus celulares, estabelecer um novo
patamar de segurança por meio da comunicação.
Se os acontecimentos do Espírito Santo ganharem maior
dimensão, o caminho da autodefesa é inevitável. Com a superação mais aguda da
crise, a experiência de se autodefender por meio da comunicação será muito
importante. Ela contribui para economizar custos num momento em que é preciso,
mais do que nunca, investir na segurança, mas, lamentavelmente, estamos
falidos.
Na verdade, eu nem iria escrever sobre isso. O tema original
eram as primeiras semanas de Donald Trump e os limites que a democracia
americana está impondo a ele. O que houve no Espírito Santo reviveu um certo
instinto, um faro, de que estamos mais perto do caos do que imaginamos.
Os acontecimentos têm sido muito surpreendentes e nos
arrastam como uma enxurrada de verão. Mas nunca resolvi a dúvida: os
acontecimentos são mesmo tão surpreendentes ou o que mudou foi a nossa
capacidade de prever?
Num país onde isso tudo acontece e o ministro da Justiça
pede demissão para se preparar para uma sabatina no Senado, realmente, vivemos
em múltiplas realidades paralelas.
Recebi uma mensagem assim: momento estranho que vivemos aqui
e no mundo. Respondi: é preciso recuperar a racionalidade, não completamente,
porque um pouco de loucura sempre tem o seu lugar.
Nos últimos tempos, as proporções estão invertidas: a
balança pendeu para a loucura.
Artigo publicado no Estadão em 10/02/2017
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