Artigo de Fernando Gabeira
Num mundo que enlouquece celeremente, o Brasil deu sua cota
na semana passada com a greve dos PMs no Espírito Santo: mortes, saques,
assassinatos e assaltos dominaram as grandes cidades capixabas. O medo se
ampliou com a possibilidade de outras PMs, notadamente Minas e Rio, seguirem o
mesmo caminho. No auge da crise, o governo como sempre se omite, e o próprio
ministro da Justiça pede demissão para se dedicar à sabatina para ocupar o STF.
A fórmula de sempre é mandar o Exército, com sua grande
força psicológica, baseada na simpatia popular pela instituição. Mais
psicológica do que real, uma vez que há 2.000 homens para cobrir a ausência dos
11 mil PMs em greve. Por trás do drama cotidiano, uma grande máquina, açucarada
e viscosa, move-se não apenas para neutralizar a Lava-Jato, mas para garantir o
poderoso esquema de corrupção que une políticos e empresários no Brasil. O
ministro indicado para o STF escreveu uma tese dizendo que presidentes não
deveriam escolher seus auxiliares porque passariam a ficar dependentes desse
favor.
Ao aceitar o cargo, Moraes é mais uma demonstração de que na
prática a teoria é outra. Sua tese acadêmica é correta. É tão simples que a
ouço nas próprias conversas de rua: “E o Temer, hein? Indicou o careca”. “Para
quê?” “Hahaha”
O interessante é que muitas pessoas inteligentes passaram a
defender a escolha do ministro da Justiça, argumentando que houve outros casos
assim. É verdade. Mas nossa experiência de redemocratização resultou numa
ruína. Apoiar-se nas mesmas práticas envelhecidas é apenas insistir num modelo
caduco. Um novo ministro teria de expressar as aspirações de agora: qualidade
intelectual e independência. A máquina se move com muitos braços. No Supremo, Gilmar
Mendes quer rever as prisões da Lava-Jato. Ele tem condições para fazer isso,
uma vez que, como presidente do CNJ, sempre se bateu para alterar o quadro das
prisões preventivas, horizontalmente, entre os presos comuns. Mas sua fala se
dá num momento em que alguns críticos da Lava-Jato avançam inclusive com a
ideia da libertação de Eduardo Cunha. Sem questionar intenções, supondo sempre
que as pessoas querem interpretar corretamente a lei, considero uma posição
perigosa.
Eduardo Cunha é mestre em eliminar provas e intimidar
testemunhas. Fez tudo para esconder os dados de computadores da Câmara que o
incriminavam. Seus prepostos ameaçavam a família de testemunhas, como o fizeram
com Alberto Youssef, que depunha na Câmara, nessa condição. A máquina se move
até em espaços solenes, como o de um funeral. “Como deter a Lava-Jato, como
colocar o Supremo contra ela?”, sussurram vozes que deveriam ser de dor e
saudade. Para o mundo político, governo inclusive, toda essa tragédia que se
desenrola nas ruas brasileiras é apenas um cenário distante. Todos se empenham
em garantir sua zona de conforto, a possibilidade de continuar enriquecendo à
custa do povo brasileiro. A única mudança que alguns parecem admitir é o ocaso
do PT, considerado um rato magro, que ao ganhar o governo foi vítima de
indigestão por sua fome acumulada. A tentativa de restaurar o esquema de
sempre, e seguir a vidinha política do Congresso como se não estivéssemos numa
profunda crise, é comovente. Digo isso porque eles parecem não compreender a gravidade
do momento. Assassinatos, saques, cabeças decepadas, tudo isso se transforma
num imenso mosaico policial, capítulo à parte em que a sucessão das atrocidades
acaba suavizando-as. Em tese, não é nada confortável em ser governo num momento
tão tenso no qual a corrupção é detestada.
O Rio está vivendo este drama com intensidade. É governado
por um remanescente do grupo que assaltou e quebrou o estado, sem condições
políticas de tirá-lo da crise. Mas não larga o osso. Existe uma dificuldade
muito grande em perceber que algo acabou, que a sociedade não aceita mais esses
padrões. Todo esse gigantesco esforço para retroceder o Brasil ao que havia
antes da Lava-Jato é patético. Se olhassem atentamente para o que acontece no
Espírito Santo, veriam que estamos no fio da navalha, habitando uma tênue
fronteira com a barbárie. Quanto mais tempo perderem maquinando tramas para
fugir da Justiça, mais a situação se agrava nas ruas. É urgente adequar as
práticas às novas aspirações da sociedade brasileira. Temer deu um pontapé
nelas ao nomear Moreira Franco ministro para garantir o foro privilegiado. E
com a outra perna chutou a nomeação do próprio ministro da Justiça para o STF.
Tantas historinhas na imprensa, mas o que fica para mim é que foram movidos
pelo medo da Lava-Jato. Só isso justificaria o desgaste da nomeação. Ou será
que vou acreditar que Temer, Padilha e Franco acordam e dizem: um belo dia para
levar pancadas; vamos dar o foro privilegiado para o Moreira.
Eles sabiam que iam apanhar e o fizeram com um objetivo
claro de autodefesa. Ou desvio de finalidade, visto por um ângulo legal. A
tentativa de segurar o país num esquema do passado pode nos custar muito caro.
Sobretudo para quem manobra nessa direção. Meu humilde conselho da planície
para o planalto: é melhor aceitar a justiça do Estado do que enfrentar a
justiça das ruas. E qualquer tentativa de neutralizar a justiça significa um
perigo maior de cair nas mãos de pessoas enfurecidas. Seguem vídeos do Espírito
Santo.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 12/02/2017
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