Cora Rónai, O Globo
Não há “piores momentos”. Todos são piores momentos, todos
revelam como e por que chegamos tão baixo, como se venderam as nossas ilusões e
se desfizeram os nossos sonhos. Todos mostram como o nosso esforço foi para
nada, como os nossos impostos só serviram para saciar a sede de — mas de que
mesmo? de badulaques? de futilidades? de viagens em jatinhos? de hotéis de
luxo? — que moveram os criminosos que mandam no país. Mas talvez o pior dos
piores, o mais acintoso, o mais repulsivo, seja aquele momento em que Emílio
Odebrecht abre o seu coração num lampejo de mágoa:
“O que nós temos no Brasil não é um negócio de cinco anos,
dez anos atrás” — diz o dono da lama toda. “Nós estamos falando de 30 anos
atrás. Tudo o que está acontecendo é um negócio institucionalizado. Era uma
coisa normal. O que me surpreende é quando eu vejo todos esses poderes, a
imprensa, tudo realmente como se isso fosse uma surpresa. Olhe, me incomoda
isso. A imprensa toda sabia que o que acontecia era isso. Por que agora estão
fazendo tudo isso? Por que não fizeram isso há dez, 15, 20 anos atrás?”
Como se vê, a culpa, mais uma vez, é da imprensa. É uma
conversa bem conhecida essa, compartilhada universalmente por bandidos de todos
os quadrantes do espectro político, que acham que imprensa boa é imprensa
morta. Mate-se a imprensa pelo que se diz que faz, e mate-se pelo que se diz
que não faz.
“Olhe, me incomoda isso.”
Pois a mim o que me incomoda é o cinismo, a cara dura, a
desfaçatez. O que me incomoda é a sua risada asquerosa, Emílio Odebrecht, a sua
vilania, a sua falta de humanidade; o que me incomoda é a sua alma podre.
Para além do incômodo, me revoltam os seus crimes, me
revolta imaginar quantas pessoas morreram pelo hospital que não houve, pela
comida que não chegou à mesa; me revolta saber quantas gerações deixaram de se
educar nos 30 anos açambarcados pela sua sordidez.
“Revolta”, aliás, nem começa a definir o que eu sinto.
______
A imprensa isso, a imprensa aquilo.
Não aguento mais isso.
Eu sei, a imprensa não é perfeita. Errou e erra muito,
sempre, como erram todos os seres vivos. Tem falhas enormes. Imensas.
Mas eu prefiro mil vezes os erros e as falhas de uma
imprensa atuante, que bota a boca no trombone, ao silêncio servil que as
ditaduras e os canalhas tanto amam.
E, ao contrário de Emílio Odebrecht e dos seus miquinhos
amestrados que se multiplicam pela internet, eu me lembro de centenas de
editoriais, matérias e colunas denunciando a corrupção ao longo dos anos, quase
uma categoria jornalística em si mesma. Também me lembro dos desmentidos
veementes dos políticos e dos incontáveis processos que moveram contra
jornalistas, assim como não me esqueço da intensa campanha de demonização da
mídia promovida pelo PT desde que chegou ao poder, e da sua obsessão com a
“regulação dos meios de comunicação”, um eufemismo “progressista” para censura.
Dito tudo isso, a verdade é que, ainda que existisse uma
percepção nítida de que estávamos cercados de ladrões, ninguém tinha a mais
pálida noção das dimensões que a corrupção havia tomado. E ninguém tinha a mais
pálida noção porque essas dimensões não eram imagináveis. Não era possível, nem
para a fantasia mais delirante, perceber a que ponto o país estava contaminado.
Quem não manifestou surpresa diante das delações ou não é
humano, ou estava por dentro do esquema.
______
Um leitor me mandou, por esses dias, uma coluna antiga de
que já havia me esquecido, e que escrevi motivada pela declaração de
rendimentos que tinha acabado de preencher. Por acaso, ela se mostrou oportuna:
eu sabia, como todos nós que temos olhos para ver sabíamos, que aquele dinheiro
ia para o ralo, para a composição de um cenário de crescimento que não era
real, para a manutenção de mordomias tão desnecessárias quanto ofensivas em
todas as instâncias do poder.
“Ao longo do ano, somos constantemente provocados pelas
autoridades federais, estaduais e municipais, que tratam o nosso dinheiro como papel
higiênico usado. É superfaturamento de obra, ministério inútil, hotel de luxo
em Roma, merenda escolar que vai para o lixo, aparelho hospitalar que apodrece
sem sair da embalagem, auxílio moradia com dez anos de retroatividade para
juízes sem teto, demolição de equipamentos esportivos recém-construídos — a
lista não acaba nunca e desafia a imaginação mais pervertida”, dizia a coluna,
que assinaria hoje como assinei em maio de 2013, sem mudar uma vírgula.
O engraçado é que, uma semana depois, um rico colunista da
“Carta Capital” usou o seu espaço para me acusar de ser uma burguesa elitista
sem compromisso com o Fabuloso Brasil de Lula & Dilma. Foi aí que, para
minha surpresa, descobri que reclamar do destino dado ao dinheiro público não é
coisa de gente bacana — gente bacana não liga para a corrupção, desde que
aquele dinheiro esteja sendo roubado do lado certo.
A gente aprende as coisas das formas mais inusitadas.
Agora só me falta mesmo entender como é que a Receita, tão
atenta aos centavos dos cidadãos comuns e tão zelosa em multá-los aos menores
erros, deixou de ver as montanhas de recursos ilícitos movimentadas debaixo do
seu nariz.
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