Bruno Carmelo, AdoroCinema
Crítica - Joaquim se abre de maneira chocante, com uma cabeça
decapitada sob a chuva torrencial. O narrador-defunto se apresenta como Joaquim
José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, que foi decapitado por traição à Coroa
portuguesa e passou a ser estudado nas escolas como herói (sim, o falecido está
consciente da futura apropriação cultural de sua imagem). O início converge
tempos históricos, rompe com a cronologia narrativa e com a contextualização dos
fatos. A radicalidade é ainda maior por se tratar de uma biografia, gênero
pouco afeito às desconstruções estruturais.
Aos poucos, a narrativa se acalma, embora mantenha uma
linguagem cinematográfica viva, com câmera na mão acompanhando os personagens,
cores fortes no retrato da natureza e diálogos ágeis, contrariando o imaginário
do comportamento empostado atribuído às relações sociais no século XVIII.
Joaquim é composto por Júlio Machado como um tipo bruto, movido mais pela ação
do que pelas convicções – no início, ele é todo exterioridade e nenhuma
psicologia. A estética contribui à impressão de imediatismo, de impulsividade
por parte do homem que arranca dentes alheios com as mãos.
Após tamanhas surpresas narrativas e estéticas, Joaquim
passa a se dedicar à descrição de procedimentos. É um trecho desenvolvido com
calma, na intenção de esclarecer algo que supõe não fazer parte do conhecimento
do espectador. Ensina-se como ocorre a busca por ouro, como se organizam as
expedições, como os militares ganham novas patentes, como os viajantes
atravessam um rio cheio de piranhas. Um militar português (Nuno Lopes),
profundamente desajeitado e ignorante, serve de referencial para que Tiradentes
tenha que explicar ao colega – e ao público, por extensão – como a história se
faz.
Neste trecho, o filme ousa se repetir, se desacelerar. Ao
invés de situar a ação nos momentos grandiosos, o diretor Marcelo Gomes se
instala nos bastidores, nos períodos inevitáveis de espera, dúvida, cansaço.
Enquanto o cinema de estúdios conta a história pelo olhar dos vencedores, este
projeto se dedica à trajetória irônica dos perdedores, das pessoas banais que
não conquistaram os seus objetivos, além daqueles que jamais vão figurar nos
livros didáticos. O filme retira do passado a sua glória, sua mecânica de causa
e consequência, para observar a criação do país como um processo contínuo e
antiespetacular.
O olhar processual permite ao roteiro efetuar seus
questionamentos mais importantes. Na expedição de busca pelo ouro reúnem-se
brasileiros, portugueses, negros e índios, somando forças à tarefa única. Isso
não impede que cada um tenha sua cultura e interesses próprios: são belíssimas
as cenas em que o escravo (Welket Bungué) faz uma jornada solitária, de
madrugada, para enterrar o cadáver de outro escravo encontrado pelo caminho, e
quando este mesmo personagem canta junto de um índio (Karay Rya Pua), cada um
com sua língua, todos igualmente brasileiros, compreendendo-se sem se
compreender. Joaquim observa a dupla e compreende enfim que as transformações
acontecem pela base da pirâmide social, e não pelo topo.
Assim ocorre o despertar político do protagonista,
fundamental aos acontecimentos que lhe trariam o rótulo popular de herói. Gomes
interrompe o filme antes de Tiradentes se tornar um mito, afinal, seria
redundante a representação do imaginário popular. Que o espectador imagine as
suas batalhas, a cena de decapitação, as conclusões da Inconfidência Mineira.
Ao invés de criar o Tiradentes-herói, o roteiro investiga os motivos para a conversão
de Joaquim em militante. Mesmo assim, não se dedica tanto à transformação
interna do personagem num rebelde: novamente, prefere as manifestações externas
à psicologia. Por isso, a conversão de Tiradentes pode soar abrupta, assim como
os encontros com o Poeta são os únicos realmente artificiais, com diálogos
explicativos e entonação solene demais.
Felizmente, Joaquim se conclui de modo tão selvagem quanto
começou. Pode ser uma solução frustrante no que diz respeito à fluidez
narrativa, mas trata-se de uma escolha potente como simbologia e discurso
político, capaz de convocar o espectador à revolta social diante de qualquer
opressão, inclusive em tempos contemporâneos. Sacrificando o ritmo e a coesão
pela complexidade do discurso, Joaquim ousa ser excessivo, fervoroso, um
projeto contrário aos moldes tradicionais e surpreendente em sua revisão da
formação do país.
Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em
fevereiro de 2017.
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