Artigo de Fernando Gabeira
Foi uma semana dura no Rio. A crise na segurança pública é
alarmante. Tiroteios, saques, ônibus incendiados, um cenário de guerra. Concordo
com os especialistas quando dizem que é preciso ajuda federal. Qualquer tipo de
ajuda. Sei das reservas que as Forças Armadas têm em participar diretamente.
Mas algo podem fazer. Na área de inteligência, por exemplo. O importante em
termos de governo é se antecipar às tragédias anunciadas por esse incessante
tiroteio.
Não entendo por que a segurança pública não está no topo da
agenda nacional. Existem, é claro, outros problemas de peso, como as reformas
ou a Segunda Turma do STJ, que resolveu, por uma escassa maioria, libertar
alguns presos da Lava-Jato. Este é um debate difícil, porque quando você
contesta uma decisão como leigo, às vezes ouve argumentos pesados: ignorante em
leis, autoritário. Os ministros Celso de Mello e Edson Fachin também acham que
a libertação dos presos é inoportuna. Seriam ignorantes em leis, como nos
querem convencer os adversários da Lava-Jato?
Um pouco de humildade bastaria para reconhecer que é um
problema complexo, decidir o momento adequado para soltar os presos. Um bom número
deles já está em casa. Uma referência para mim é a lógica das investigações.
Perigo à ordem pública, destruição de provas, ocultação do dinheiro roubado,
continuidade no crime, como é o caso de José Dirceu, são fatores que pesam
quando se avalia um habeas corpus.
Na decisão que manteve Sérgio Cabral na cadeia, o STJ
incluiu um outro fator: amenizar a sensação de impunidade que se espalha ,
arrasando a confiança no país. Essa sensação de impunidade se adensa com as
decisões da Segunda Turma, na qual a maioria é formada por Gilmar Mendes, um
adversário declarado da Lava-Jato, e dois ministros fiéis ao PT.
Cerca de 40% dos presos no Brasil são provisórios, o goleiro
Bruno é um deles. Mas nem todos têm condições de chegar ao Supremo ou a sorte
de Eike Batista e seu sócio Flávio Godinho, que aterrissaram, precisamente, na
mesa de Gilmar.
A mensagem da Lava-Jato de que a lei vale para todos fica
abalada. As pessoas acabam acreditando que nada vai acontecer. Existe o forte
argumento de que não importa se a pessoa é poderosa ou não, a lei tem de ser
aplicada. Mas quando é aplicada só para a minoria que dispõe de competentes
advogados, é preciso ser aplicada com rigor. Foi uma votação apertada, que
derrotou dois competentes juristas. Para eles e para milhões de leigos, entre
os quais me incluo, foi um erro motivado pela vontade de enquadrar a Lava-Jato.
Isso não significa que ela não possa ser enquadrada por
instâncias superiores da Justiça. Uma coisa é corrigir erros para avançar,
outra é se lançar contra os procuradores como faz Gilmar Mendes, ironizando uma
denúncia como “brincadeira juvenil”. A impressão que Gilmar Mendes dá é a de
que quer derrotar a Lava-Jato. Conheço os dois lados da moeda; o ímpeto juvenil
e a experiência dos velhos. Aprendi que esses dois fatores podem andar juntos
quando há um objetivo comum. E o objetivo deveria ser desmantelar o gigantesco
esquema de corrupção que arruinou o país.
Gilmar e os dois ministros fiéis ao PT afirmam que estão
cumprindo a lei. Celso de Mello e Edson Fachin veem uma outra maneira de
cumprir a lei. O choque entre essas duas concepções não é uma luta contra
ignorantes e letrados, autoritários e democratas. É apenas uma escolha diante
da qual seremos responsáveis no futuro. Uma escolha entre fortalecer a
Lava-Jato, inclusive criticando-a, ou simplesmente engrossar a ampla
conspiração para liquidá-la.
Minhas dúvidas sobre a posição de Gilmar Mendes acabaram
quando ele sugeriu a anulação das delações da Odebrecht porque houve um
vazamento. Naquela altura, com todo o Brasil e parte do continente esperando os
dados para conhecer o que houve, a sugestão de Gilmar Mendes trouxe um
calafrio. Percebi que não só estava em luta contra os procuradores da
Lava-Jato, como queria derrotá-los amplamente, inclusive o seu trabalho.
Não vejo problema em ministros e procuradores discordarem ou
mesmo debater em público suas diferenças. As coisas complicam quando a luta
entre concepções distintas chega a ponto de ignorar ou mesmo sacrificar um
objetivo que deveria ser comum a todo o aparato da Justiça. Ignoro as razões
mais profundas da cruzada de Gilmar Mendes contra a Lava-Jato. Na sua
formulação, está garantindo o estado de direito. Na prática, não só através de
sentenças, frases e sugestões, está tendo uma atitude destrutiva.
O que foi revelado até agora pelas investigações, o dinheiro
recuperado, as delações — tudo marcou muito o imaginário brasileiro nos últimos
anos. Vai ser difícil derrotar a Lava-Jato. É poeira demais para se esconder
embaixo do tapete. No entanto, nesta fase de sua trajetória, encontrou um forte
adversário: a turma que vai julgá-la no STF.
Novo cenário, novas aflições.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 07/05/2017
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