Da ISTOÉ
A senadora Gleisi Hoffmann não é apenas a representante
legal do Partido dos Trabalhadores — enquanto presidente da legenda da estrela
rubra. Gleisi é hoje o retrato mais bem acabado do fosso profundo em que se
embrenhou a sigla. Como irmãos siameses, ambos podem ser facilmente
confundidos. Cordeiro só na epiderme de porcelana, Gleisi é como o PT dos
últimos tempos: posa de tolerante, mas nunca apresentou-se tão autoritária.
Finge-se de democrata, mas não hesita em franquear apoio a ditaduras — como a
instaurada por Nicolás Maduro, na Venezuela. Alega ser vítima de perseguição
política, mas é quem melhor encarna o papel de algoz de parcela dos
brasileiros. Arvora-se paladina da ética, mas é constantemente flagrada com as
mãos sujas da corrupção. É a tal cegueira mental de que falava José Saramago:
consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que for
suscetível de servir aos seus interesses. Na última semana, a Polícia Federal
concluiu um contundente relatório em que imputa a Gleisi os crimes de corrupção
passiva qualificada e lavagem de dinheiro. O relatório congrega laudos
técnicos, registros de telefonemas, planilhas e trechos de delações de
executivos da Odebrecht e de sócios de uma agência de publicidade da qual a
petista se valeu para receber propina. A partir dos documentos é possível
traçar o caminho do dinheiro até Gleisi Hoffmann. Uma das planilhas em poder da
PF indica as datas de oito pagamentos de R$ 500 mil cada para a campanha de
“Coxa” ao Senado em 2014. Segundo a delegada Graziela Machado “existem
elementos suficiente a confirmar que o codinome Coxa se refere a Gleisi Helena
Hoffmann”. O esquema envolveu também o Ministro do Planejamento no governo Lula
e das Comunicações no governo Dilma, Paulo Bernardo — marido de Gleisi e que
chegou a preso por desviar recursos de empréstimos concedidos a servidores
públicos aposentados. O conjunto de desembolsos à petista perfaz um total de R$
4 milhões, mas os colaboradores chegaram a mencionar repasses de R$ 5 milhões
apenas no ano de 2014.
Setor de propinas
A apuração começou em fevereiro de 2016, quando a PF
apreendeu documentos na residência de Maria Lúcia Tavares, secretária do Setor
de Operações Estruturadas da Odebrecht, o já famoso departamento de propinas da
empresa. Em dezembro do ano passado, três executivos da Odebrecht detalharam as
anotações apreendidas pela PF e as mensagens de correio eletrônico relacionadas
a Gleisi e ao codinome “Coxa”: o presidente do grupo, Marcelo Odebrecht, o da
unidade infraestrutura, Benedicto Júnior, e o diretor da empresa na região Sul,
Valter Lana. Segundo a PGR, o trio narrou “diversos repasses financeiros” nos
anos eleitorais de 2008, 2010 e 2014, por solicitação direta de Paulo Bernardo.
De acordo com Odebrecht, o acerto para pagar Gleisi passou pelas mãos do ex-ministro
da Fazenda e da Casa Civil Antonio Palocci, hoje preso em Curitiba.
O advogado do casal Rodrigo Mudrovitsch disse à ISTOÉ que as
informações levantadas “não autorizam” as conclusões dos investigadores. A PF,
no entanto, é taxativa: “Há elementos suficientes para apontar a materialidade
e autoria dos crimes de corrupção passiva qualificada e lavagem de dinheiro
praticados pela senadora, seu então chefe de gabinete, Leones Dall Agnol e seu
marido, Paulo Bernardo da Silva. Os autos também comprovam que a parlamentar e
seu marido, juntamente com Benedicto Barbosa da Silva Júnior e Valter Luiz
Arruda Lana, foram responsáveis pelo cometimento de crime eleitoral”. Agora, o
destino de Gleisi está nas mãos da Procuradoria-Geral da República, a quem
caberá pedir ou não seu indiciamento ao relator do caso no Supremo Tribunal
Federal, o ministro Edson Fachin.
Espelho de um PT que deixou as bandeiras históricas de lado
para enveredar pelo caminho da indigência moral, Gleisi é alvo da Lava Jato
desde os primórdios da investigação. Na ocasião, os policiais descobriram que
ela recebera R$ 1 milhão em propinas desviadas da estatal. Para emitir sua
versão sobre esse processo em particular, no qual é ré, a senadora será
interrogada pela Justiça no próximo dia 28, ao lado do marido Paulo Bernardo. É
possível que o julgamento ocorra ainda este ano. O dinheiro, neste caso, foi
repassado por doleiros. Seria apenas o fio de um extenso novelo que implicava o
até então casal mais influente da Esplanada. A propina era desviada para um
escritório de advocacia de Curitiba por meio de uma operação dissimulada: a
Consist, empresa originalmente de software, fazia de conta que pagava pelos
serviços advocatícios e, sem deixar digitais, os advogados bancavam as despesas
do casal. Um dos sócios, o advogado Sasha Reck, depois de acusado de
envolvimento na falcatrua, resolveu se mexer. Encomendou uma auditoria
independente nas contas do escritório e descobriu aquilo que a Polícia Federal
não levaria muito tempo para entender: o contrato de serviços jurídicos com a
Consist era de fachada. A empresa também operou no Ministério do Planejamento e
irrigou as contas do PT, por meio do ex-tesoureiro João Vaccari — razão pela
qual Bernardo amargou seis dias na prisão, em 2016.
“O PT manifesta seu apoio e solidariedade ao governo do
Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), seus aliados e ao presidente
Maduro, frente à violenta ofensiva da direita contra o governo da Venezuela”
“Gostando-se ou não de Maduro, ele tem legitimidade, foi
eleito na urna, o que não é o caso de quem governa o Brasil”
“Temos a expectativa que a Assembléia Constituinte possa
contribuir para uma consolidação cada vez maior da revolução bolivariana e que
as divergências políticas se resolvam de forma pacífica”
“A vitória da Assembleia Constituinte demonstra claramente
que é possível enfrentar e derrotar as novas táticas eleitorais e golpistas da
direita”
“No Brasil também defendemos uma Constituinte para implantar
as reformas”
Como é possível notar, Gleisi e PT sempre tiveram tudo a
ver. Hoje, suas conveniências entrelaçam-se mais do que nunca. Em junho, Gleisi
conquistou a presidência do partido com 60% dos votos dos delegados. Em sua
primeira declaração, disse que o partido não iria fazer autocrítica de seus
atos escabrosos “porque não contribuiria para fortalecer o discurso dos
adversários”. “Não somos organização religiosa, não fazemos profissão de culpa,
tampouco nos açoitamos. Não vamos ficar enumerando os erros que achamos para
que a burguesia e a direita explorem nossa imagem”, discursou Gleisi. Em
seguida, na mesma toada de seu padrinho mais ilustre, o ex-presidente Lula, a
senadora petista passou a dourar outra narrativa: a de vítima. Foi para
exercitá-la que “Coxa” foi guindada ao posto também com a bênção de José Dirceu.
Em recente reunião em sua residência, o ex-capitão do time de Lula assim
classificou a petista: “Ela é orgânica e focada”.
Além de se esgueirar dos avanços da PF sobre ela, o foco da
presidente petista, ultimamente, consiste em tecer loas ao regime ditatorial de
Nicolás Maduro, na Venezuela. No PT, a senadora é quem entoa com mais vigor o
discurso pró-Maduro. Desde o início da repressão, Gleisi deu toda sorte de
demonstrações de solidariedade ao governo venezuelano. No último Congresso do
PT, por exemplo, recebeu uma delegação da embaixada venezuelana. Presente ao
evento, o ex-presidente Lula não mencionou o tema, como era aguardado, uma vez
que na campanha eleitoral ele havia gravado um vídeo em favor de Maduro. Razão:
ele e outros petistas seriam contra a Constituinte, em dissonância com o que
tem pregado Gleisi. No partido, no entanto, há quem diga tratar-se de uma
estratégia. Enquanto Lula é poupado da exposição a um tema para lá de delicado,
caberia a presidente do PT, por assim dizer, o “serviço sujo” — o qual ela
pratica com convicção e impressionante entusiasmo.
PT ajudou a bancar a ditadura de Maduro
De 2006 a 2014, os governos de Lula e Dilma financiaram, por
meio do BNDES, importantes projetos na Venezuela
Sem segredo
Ao abrir o 23º encontro do Foro de São Paulo, dia 16 na
Nicarágua, a presidente do PT declarou, em nome do partido, apoio ao governo do
Partido Socialista Unido da Venezuela. “O PT manifesta o seu apoio e
solidariedade ao PSUV, seus aliados, e ao presidente Nicolás Maduro, frente à violenta
ofensiva da direita pelo poder na Venezuela. Temos a expectativa de que a
Assembleia Constituinte possa contribuir para uma consolidação cada vez maior
da revolução bolivariana e que as divergências políticas se resolvam de forma
pacífica”, disse. O endosso da Constituinte feito por Gleisi carrega um outro
significado: escancara o desejo irrefreável do PT de executar um programa
bolivariano no País. Nos 13 anos em que esteve no poder foram inúmeras as
tentativas de aplicá-lo, sem sucesso devido à solidez de nossas instituições.
Mas o programa de censura a meios de comunicação e perseguição a adversários
políticos, caso o partido retorne ao poder, já não constitui mais um segredo de
polichinelo no PT, a julgar pelos recentes discursos de Lula.
Independentemente das reais intenções, o apoio à ditadura de
Maduro representa, sem sombra de dúvida, a página mais vergonhosa da história
do Partido dos Trabalhadores e, consequentemente, de Gleisi. O que se vê por lá
é uma catástrofe humanitária sem precedentes. Os números são eloquentes, por
desoladores. Em quatro Estados daquele País, a desnutrição infantil já alcança
20% das crianças com menos cinco anos de idade. O País amarga ainda a segunda
maior taxa de homicídios do mundo. O índice de assassinatos em Caracas é 14
vezes maior que o de São Paulo, por exemplo. A inflação projetada para este ano
é de 2.200%. Para se manter a qualquer custo no poder, Maduro apela para a
violência extrema. Só nas últimas semanas, a guerra civil conflagrada no País
deixou um saldo de mais de 100 mortes. É para ele que Gleisi bate palmas. Para
justificar essa cumplicidade, os petistas, Gleisi à frente, praticam uma
desonestidade intelectual: cada denúncia contra o regime é encarada como parte
de uma campanha da CIA ou da imprensa “golpista”. Nada mais falso. São os
órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos, nos quais se escudaram a
esquerda latino-americana no passado, quem mais apontam para os descalabros
venezuelanos. “Na Venezuela toda a gama de direitos humanos é violentada.
Direitos econômicos, sociais, culturais. As liberdades fundamentais, o direito
à associação, a liberdade de expressão. Está havendo um contexto repressivo e
militarizado diante das demonstrações de descontentamento social, no qual, além
disso, são feitas detenções arbitrárias como ferramenta de controle, de calar
as vozes da dissidência”, afirmou recentemente Erika Rivas, diretora da Anistia
Internacional para as Américas.
Não foram apenas as afinidades eletivas que levaram Gleisi a
alcançar a presidência do PT. A senadora se cacifou para assumir o partido
quando passou a adotar a postura de líder da tropa de choque de Lula e Dilma no
Senado. Na verdade, começava ali a manchar publicamente a própria biografia.
Depois do impeachment, para deleite do petismo, ela transformou sua atividade
parlamentar em sinônimo da política do quanto pior melhor, promovendo uma
oposição inconsequente que em nada contribui para o avanço do País. A postura
da presidente do PT ecoou entre os eleitores. Recentemente, Gleisi conversava
com um jornalista quando foi abordada por uma cidadã: “Oi, Gleisi, você já está
preparada para ser presa?”, perguntou. Ao que a petista replicou com uma
resposta atravessada. “Não, querida, mas você pode ir”. Resultado: abriu o
flanco para tomar outra invertida. “Eu não. A bandida aqui não sou eu”, sapecou
a mulher. O diálogo foi gravado e viralizou nas redes sociais. Internamente no
partido, a atitude intempestiva da senadora não foi bem recebida. Houve quem
recomendasse recato, no momento em que a sigla experimenta a maior crise de sua
história. Ela não aquiesceu.
O PT A CONHECE BEM
Outro motivo de desgaste interno é a maneira imprudente,
para dizer o mínimo, com que Gleisi sempre escolheu seus assessores mais
próximos. Seu mais lamentável intento foi nomear Eduardo Gaievski (PT/PR) para
trabalhar no gabinete contíguo o da presidente deposta Dilma Rousseff (PT),
quando ela era ministra da Casa Civil. E, pasme, como responsável pelas
políticas da Presidência para Jovens e Adolescentes. Gaievski não tem
currículo. Ostenta uma ficha corrida de dar calafrios. Hoje ele é acusado de
crimes sexuais, sendo a maior parte deles contra menores. Na sequência, Gleisi
escolheu o deputado André Vargas (PT/PR) para chefiar sua campanha ao governo
do Paraná, para depois ter de afastá-lo pelo envolvimento com o doleiro Alberto
Youssef e o ex-Diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa, em
fraudes investigadas pela PF. A petista não pode alegar que desconhecia a face
mais obscura de Vargas. Em 1998, ele foi indiciado por desvio de R$ 14 milhões
da Prefeitura de Londrina (PR) para abastecer o caixa 2 da campanha a deputado
do seu marido Paulo Bernardo. Na verdade, ela o conhecia muito bem. E era por
isso que ele estava lá. É como ela própria, Gleisi: é por conhecê-la a fundo
que o PT a alçou ao comando máximo da legenda.
Os malfeitos de Gleisi
• A senadora Gleisi Hoffmann é investigada no STF por ter
recebido R$ 1 milhão em propinas da Odebrecht para sua campanha ao Senado em
2010
• No próximo dia 28, ao lado do marido Paulo Bernardo,
Gleisi estará sentada no banco dos réus para dar sua versão sobre o caso
• O dinheiro era repassado a Gleisi por doleiros. A propina
era desviada por um escritório de advocacia de Curitiba
• O casal Gleisi e Paulo Bernardo usava a empresa de
software Consist para simular o pagamento de serviços advocatícios. Na verdade,
era por meio dela que o casal tinha suas contas pessoais bancadas. A Consist
também mantinha polpudos contratos com o Ministério do Planejamento, comandado
por Paulo Bernardo durante o governo Dilma
• No departamento de propinas da Odebrecht foram encontradas
planilhas de três repasses de R$ 150 mil cada, no total de R$ 450 mil, feitos à
Coxa, o codinome de Gleisi. Os pagamentos foram feitos entre 2008 e 2010
• A senadora está sendo julgada na Comissão de Ética do
Senado por quebra de decoro, ao invadir a mesa diretora do Senado, em 11 de
julho deste ano
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