Charlottesville era previsível. Imprevista era a reação de
Trump, o primeiro presidente dos Estados Unidos a dar publicamente cobertura à
violência e ao racismo da extrema direita. Com a polarização entre a chamada
alt-right, a extrema-direita, e os antifas, os antifascistas, nascida da
radicalização pela direita, um confronto desses tende mesmo a acontecer e mais
de uma vez. Principalmente no Sul, onde os ânimos nunca foram exatamente
serenos, quando se trata da questão racial. Há muito se sabe da existência de
neonazistas no país. Mas a alt-right, reconvocou os extremistas com sua adesão
explícita ao núcleo de valores que alimenta a intolerância nacionalista, o
domínio masculino e a fé na supremacia branca. Um dos emuladores da alt-right é
Stephen Bannon, amigo e principal conselheiro político de Trump, que estava
aquartelado na Casa Branca. Até ser demitido na sexta (18). Bannon atacou
o Partido Republicano, dizendo que não
existe um "partido conservador funcional" hoje nos Estados Unidos.
Mostrou regozijo com as declarações de Trump que certamente influenciou. Havia
e há identidade ideológica entre o presidente e seu estrategista. Trump,
confidenciou a seus auxiliares estar aliviado em dizer o que realmente pensava
após a última entrevista que foi a gota d'água a transbordar a indignação dos
republicanos.
Como sempre, subestimou a reação do arco majoritário da
sociedade americana, que se situa entre a direita liberal e a centro-esquerda.
Os grandes empresários que viam nele o primeiro CEO a chegar à Casa Branca
afastaram-se de seu governo, com declarações de repúdio a suas atitudes. Os
chefes militares publicaram notas desautorizando o pensamento do seu
comandante-em-chefe. Mas, pior para Trump, desfez-se o tênue apoio que ainda
lhe restava no Partido Republicano. Trump não deu a importância devida ao fato
de que a Ku Klux Klan não é aceita pela sociedade americana, nem mesmo pela
maioria da população do Sul. Desprezou, igualmente, o fato de que, além dos
típicos aparatos da KKK e de manifestações racistas contra os negros e os
imigrantes, muitos agitavam bandeiras nazistas pelo campus da Universidade da
Virgínia e gritavam palavras de ordem antissemitas.
Bannon deu demonstrações de aprovação desses sentimentos repulsivos
e acirrou a oposição contra ele na entourage de Trump, liderada por seu cunhado
judeu, Jared Kushner, e por sua filha convertida ao judaísmo, Ivanka. A reação
contra Trump foi avassaladora. A maior parte da imprensa de direita, fora o
Breitbart de Bannon, ficou contra ele, mesmo mostrando simpatia pela a
alt-right e antipatia pelo que chama de alt-left, os grupos mais à esquerda de
Bernie Sanders aos antifas. Se opuseram ao comportamento de Trump e à demissão
de Bannon. O Breitbart estampou na sua primeira página, na sexta-feira da
partida de Bannon da Casa Branca, manchete dizendo que ele voltava à casa e o
chamava de "o herói populista".
Há uma clara cisão entre os republicanos. Um movimento no
qual os mais conservadores parecem se afastar cada vez mais do partido. Começou
com o Tea Party e ampliou-se com a alt-right e suas subdenominações. Pode estar
se anunciando um novo realinhamento partidário nos Estados Unidos. O último, e
quinto, aconteceu no New Deal, nos anos 1930, com a adesão dos eleitores negros
e dos operários, blue-collar workers, ao Partido Democrata. Mudou totalmente a
fisionomia do bipartidarismo americano.
As contradições de Trump são conhecidas e ridiculamente
contraditórias. Espantado com a enorme reação de repúdio à sua atitude, cedeu
às pressões de seu novo chefe de Gabinete, John Kelly, de seu genro e
conselheiro íntimo, Kushner, e de seu assessor econômico, Gary Cohn e demitiu
Bannon. Na sua desastrada entrevista, disse que Bannon não era racista e era um
amigo. Sem dúvida, entre todos esses envolvidos no enredo da saída de Bannon é
com ele que Trump tem mais afinidades de ideias, valores e sentimentos.
Trump está chegando a seu limite de resistência. Mesmo no
presidencialismo imperial americano, um presidente não tem condições de
governabilidade se perde o apoio do núcleo dominante de seu próprio partido. A
estabilidade de seu mandato não depende, como no presidencialismo de coalizão
brasileiro, de apoio da maioria do Congresso. Mas sem a sustentação do núcleo
duro do seu partido, o mandato tende ao fim precoce. Há especulações de que
Trump renunciaria no outono, por volta de outubro. Ele tem a personalidade
daqueles que perdendo o gosto pelo novo brinquedo o abandonam repentinamente.
Mas há processos menos subjetivos em curso que podem levar
ao mesmo destino. A investigação sobre as relações promíscuas de Trump e sua
equipe de campanha com a Rússia está chegando à maturidade. Começará a gerar
fatos concretos em breve e que podem abalar de vez o seu mandato. A aposta majoritária
é que não ficará na presidência por todo o período de quatro anos. Os
republicanos temem o que farão os eleitores nas eleições intermediárias. Tendem
a afastar-se dele para preservar seus próprios mandatos. A debandada do big
business, as declarações explícitas,
incomuns em CEO's normalmente avessos a declarações políticas, de
oposição ao "racismo" do governo, a divergência declarada, também
incomum, dos comandantes militares com a atitude do chefe e as críticas duras
ao presidente vindas do establishment Republicano são sinais fortes de que ele
está perdendo as condições de governabilidade.
Como Charlottesville não era um evento inesperado, ainda que
difícil de prever com local, data e hora, um presidente politicamente hábil,
com uma assessoria de comunicação competente, estaria preparado para dar a
resposta política no tom certo, a incidentes dessa gravidade e teor. É um
governo despreparado, nas mãos de um condutor destemperado e egocêntrico. Dele
se pode esperar esse quadro surreal de idas e vindas, declarações inadmissíveis
de parte do presidente dos Estados Unidos, demissões erráticas. É, com certeza,
um governo perigoso para os americanos e para o mundo.
Vivemos numa sociedade de risco. Risco de todo tipo. Risco é
a possibilidade de ocorrer algo imprevisível e que pode causar grande dano.
Trump não é um risco. Ele pode causar grandes danos domésticos e globais, mas a
possibilidade de que faça algo impensado e irreversível nada tem de
imprevisível. É um perigo presente e iminente. Risco é um atentado como o de
Barcelona. A arma é um veículo qualquer, ônibus, van, caminhão. O alvo é
aleatório. Basta que haja um aglomerado, de preferência plural, de pessoas
diversas. Em qualquer local público, de alguma capital-alvo, Paris, Berlim,
Londres, Estocolmo, Bruxelas, Barcelona. O agente pode ser um nativo do país,
ou um imigrante naturalizado há vários anos residente no país. Mas pode,
também, ser um recém-chegado. Não há indícios prévios, reuniões monitoráveis,
atitudes suspeitas, compra e porte de armas, presença detectável de explosivos.
Esse tipo de atentado brutal e irracional é imprevisível e pode causar muito
dano. Em Barcelona, matou treze, feriu quinze gravemente, atingiu perto de cem
pessoas, de dezenas nacionalidades distintas.
Inesperada foi a trajetória eleitoral de Trump. Inesperadas
são suas atitudes, quase tão aleatórias quanto os alvos dos atentados como o de
Barcelona. Mas Trump já está conhecido. Pode-se esperar que cometa novos
desatinos, não se sabe bem quando ou por que. Mas deve-se prever que, num
desses, com a Coreia do Norte ou outro inimigo da vez, faça algo que provoque
um grande incidente global de alarmante gravidade. Logo, é possível evitar que
isto aconteça. Está, na verdade, nas mãos dos republicanos sensatos. E eles
parece que estão cada vez mais alertas.
Sérgio Abranches, Blog do Matheus Leitão
* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e
comentarista da CBN. É colaborador do blog com análises do cenário político
internacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário