domingo, 13 de agosto de 2017

O INTERMINÁVEL MAR DE LAMA

Artigo de Fernando Gabeira
“Quantas toneladas/ exportamos de ferro? Quantas lágrimas/ disfarçamos sem berro?” Estes versos de Drummond contam uma longa história da mineração em Minas. Uma história que se confirmou pela anulação do processo de Mariana sobre o mar de lama que provocou 19 mortos, dezenas de lares perdidos e um rio envenenado.
O processo foi anulado porque a polícia teria lido e-mails da empresa, sem autorização. Ela só poderia ler e-mails de um período determinado. O argumento da anulação: violência contra a privacidade da Samarco.
Tenho dificuldades em entender por que a quebra da privacidade de uma empresa é superior à morte de 19 pessoas, destruição de comunidades e envenenamento do mais importante rio do litoral brasileiro.
Foi o maior desastre ambiental do Brasil. Precisa ser julgado. Se a polícia leu e-mails demais, basta neutralizar as informações não permitidas. O essencial está lá: a lama, as mortes. O desastre não é um segredinho da Samarco. É uma realidade que todos que viram sentiram e choraram.
No fim da semana, ao chegar em casa, soube que houve um saque a um caminhão de carne tombado. Para mim isso não é novidade. Vejo e filmo, constantemente, saques a caminhões nas estradas brasileiras. No entanto, este tinha um componente especial: ninguém se importou em socorrer o motorista. O saque se prolongou por quase uma hora, antes que chegassem os bombeiros e retirassem o pobre homem dos escombros.
Se junto esses fatos é para enfatizar como é grave um momento em que a vida humana perde seu valor. Um vereador do Rio chegou ao extremo de cobrar propina para liberar corpos do IML. A própria morte passa ser um objeto de negociação.
No seu livro sobre o homo sapiens, Yuval Noah Harari reflete sobre a linguagem humana. Ela não nasceu apenas da relação com as coisas, da necessidade de alertar sobre o perigo, ou mesmo do interesse das pessoas pela vida das outras, da fofoca. Uma singularidade da linguagem humana é sua capacidade de falar de coisas que não existem materialmente, de um espírito protetor, de um sentimento nacional. Esses mitos que nos mantêm unidos ampliam nossa capacidade produtiva e nossas conquistas comuns.
O que está acontecendo no Brasil é o esgarçamento dessa ideia de pertencer ao mesmo país, de partilhar uma história e um futuro.
O mito da nacionalidade é bombardeado intensamente em Brasília por um sistema político decadente. Eles voltam as costas para o povo e decidem, basicamente, aquilo que é de seu interesse pessoal.
Os laços comuns se dissolvem. Não há mais sentimento de comunidade, e daí para adiante é fácil dissolver os laços entre os próprios seres humanos.
No sentido de partilharmos aspirações comuns, já não somos mais um país. E caminhamos para uma regressão maior desprezando as possibilidades abertas pela linguagem, pelos ancestrais que a usavam para grandes conquistas coletivas.
Somos dominados por um sistema político cínico, que se alimenta, na verdade, da repulsa que nos provoca. Mais repulsa, mais indiferença, isto é, menos possibilidade de mudanças reais.
Quando visitei Israel, um motorista de ônibus, ao ver um incêndio, parou, desceu e foi apagá-lo. Muitas vezes na Europa vi gente reclamando quando se joga lixo na rua. E os próprios suíços chamando a polícia quando há barulho depois das dez da noite.
Isso não é aplicável à nossa cultura de uma forma mecânica. Eu mesmo devo fazer barulho depois das dez. Mas o que está por baixo dessas reações é a sensação de pertencer a um todo maior, de ter responsabilidades com ele.
A degradação política conseguiu enfraquecer esse sentimento no Brasil. Eles fingem encarnar um país e quem os leva a sério acaba virando as costas também para esse país repulsivo.
O resultado desse processo destruidor está aí. Reconheço que mecanismos de desumanização estão em curso em todo o mundo e que fazem parte de um processo mais amplo. Mas é uma ilusão pensar que nossas vidas são apenas um reflexo de uma época que tritura valores. Existem razões específicas, made in Brazil, que nos fazem recuar em termos civilizatórios.
A expressão “elite moralmente repugnante” foi durante muitos anos aplicada aos setores dominantes do Haiti. Ela pode ser transferida para Brasília.
A coexistência silenciosa e indiferente diante dessa realidade vai minar os próprios fundamentos da vida comum.
Os versos de Drummond não se limitam a descrever a tragédia mineral: quantas toneladas de ferro, quantas lágrimas disfarçadas?
O Brasil vai recuperar a força de sua humanidade quando se rebelar. Enquanto aceitar silencioso as afrontas que vêm de cima, a tendência é abrir mão de suas conquistas de homem sapiens e mergulhar numa noite de Neandertal.
O sinais estão aí. Adoraria estar enganado.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 13/08/2017 
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