“Quantas toneladas/ exportamos de ferro? Quantas lágrimas/
disfarçamos sem berro?” Estes versos de Drummond contam uma longa história da
mineração em Minas. Uma história que se confirmou pela anulação do processo de
Mariana sobre o mar de lama que provocou 19 mortos, dezenas de lares perdidos e
um rio envenenado.
O processo foi anulado porque a polícia teria lido e-mails
da empresa, sem autorização. Ela só poderia ler e-mails de um período
determinado. O argumento da anulação: violência contra a privacidade da
Samarco.
Tenho dificuldades em entender por que a quebra da
privacidade de uma empresa é superior à morte de 19 pessoas, destruição de
comunidades e envenenamento do mais importante rio do litoral brasileiro.
Foi o maior desastre ambiental do Brasil. Precisa ser
julgado. Se a polícia leu e-mails demais, basta neutralizar as informações não
permitidas. O essencial está lá: a lama, as mortes. O desastre não é um
segredinho da Samarco. É uma realidade que todos que viram sentiram e choraram.
No fim da semana, ao chegar em casa, soube que houve um
saque a um caminhão de carne tombado. Para mim isso não é novidade. Vejo e
filmo, constantemente, saques a caminhões nas estradas brasileiras. No entanto,
este tinha um componente especial: ninguém se importou em socorrer o motorista.
O saque se prolongou por quase uma hora, antes que chegassem os bombeiros e
retirassem o pobre homem dos escombros.
Se junto esses fatos é para enfatizar como é grave um
momento em que a vida humana perde seu valor. Um vereador do Rio chegou ao
extremo de cobrar propina para liberar corpos do IML. A própria morte passa ser
um objeto de negociação.
No seu livro sobre o homo sapiens, Yuval Noah Harari reflete
sobre a linguagem humana. Ela não nasceu apenas da relação com as coisas, da
necessidade de alertar sobre o perigo, ou mesmo do interesse das pessoas pela
vida das outras, da fofoca. Uma singularidade da linguagem humana é sua
capacidade de falar de coisas que não existem materialmente, de um espírito
protetor, de um sentimento nacional. Esses mitos que nos mantêm unidos ampliam
nossa capacidade produtiva e nossas conquistas comuns.
O que está acontecendo no Brasil é o esgarçamento dessa
ideia de pertencer ao mesmo país, de partilhar uma história e um futuro.
O mito da nacionalidade é bombardeado intensamente em
Brasília por um sistema político decadente. Eles voltam as costas para o povo e
decidem, basicamente, aquilo que é de seu interesse pessoal.
Os laços comuns se dissolvem. Não há mais sentimento de comunidade,
e daí para adiante é fácil dissolver os laços entre os próprios seres humanos.
No sentido de partilharmos aspirações comuns, já não somos
mais um país. E caminhamos para uma regressão maior desprezando as
possibilidades abertas pela linguagem, pelos ancestrais que a usavam para
grandes conquistas coletivas.
Somos dominados por um sistema político cínico, que se
alimenta, na verdade, da repulsa que nos provoca. Mais repulsa, mais
indiferença, isto é, menos possibilidade de mudanças reais.
Quando visitei Israel, um motorista de ônibus, ao ver um
incêndio, parou, desceu e foi apagá-lo. Muitas vezes na Europa vi gente
reclamando quando se joga lixo na rua. E os próprios suíços chamando a polícia
quando há barulho depois das dez da noite.
Isso não é aplicável à nossa cultura de uma forma mecânica.
Eu mesmo devo fazer barulho depois das dez. Mas o que está por baixo dessas
reações é a sensação de pertencer a um todo maior, de ter responsabilidades com
ele.
A degradação política conseguiu enfraquecer esse sentimento
no Brasil. Eles fingem encarnar um país e quem os leva a sério acaba virando as
costas também para esse país repulsivo.
O resultado desse processo destruidor está aí. Reconheço que
mecanismos de desumanização estão em curso em todo o mundo e que fazem parte de
um processo mais amplo. Mas é uma ilusão pensar que nossas vidas são apenas um
reflexo de uma época que tritura valores. Existem razões específicas, made in
Brazil, que nos fazem recuar em termos civilizatórios.
A expressão “elite moralmente repugnante” foi durante muitos
anos aplicada aos setores dominantes do Haiti. Ela pode ser transferida para
Brasília.
A coexistência silenciosa e indiferente diante dessa
realidade vai minar os próprios fundamentos da vida comum.
Os versos de Drummond não se limitam a descrever a tragédia
mineral: quantas toneladas de ferro, quantas lágrimas disfarçadas?
O Brasil vai recuperar a força de sua humanidade quando se
rebelar. Enquanto aceitar silencioso as afrontas que vêm de cima, a tendência é
abrir mão de suas conquistas de homem sapiens e mergulhar numa noite de
Neandertal.
O sinais estão aí. Adoraria estar enganado.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 13/08/2017
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