A gravidade da crise política, institucional e moral que
atinge o País pode ser medida pela extravagância das soluções que diferentes
setores da sociedade começam a defender para superá-la. Em comum, essas ideias
exalam profundo desprezo pelos políticos, que seriam, na visão de seus
proponentes, o cerne da corrupção nacional. Ou seja: retire-se a política dos
políticos, entregando-a a instituições supostamente acima de qualquer suspeita,
dispensadas de aval eleitoral em razão de sua alegada legitimidade intrínseca,
e então, como consequência lógica, restaura-se a moralidade. Tudo isso,
note-se, em nome da salvação da democracia e da Constituição, justamente as
grandes vítimas dessa cruzada que se pretende saneadora.
Os dois artigos da página A2 de hoje – que chegaram num
mesmo dia à Redação – são exemplos desses argumentos, que têm florescido graças
ao ambiente insalubre do brejal em que se transformou a atividade política. É
por essa razão que decidimos publicá-los: para que sirvam como ilustração do
pensamento que, ao que tudo indica, tem o potencial de vicejar dentro das
instituições às quais se referem – o Judiciário e as Forças Armadas – e também
entre os cidadãos desencantados com os políticos.
O artigo intitulado O Judiciário e o discurso do golpe, por exemplo,
considera natural a judicialização da política, isto é, a ação de magistrados
em seara que deveria estar reservada apenas aos representantes eleitos pelo
voto direto. De acordo com esse raciocínio, a representação política no Brasil
perdeu seu sentido em razão da corrupção e do descolamento em relação aos
anseios da sociedade. Logo, não restou ao Judiciário outra coisa a fazer senão
assumir o papel do Parlamento – e isso, na concepção exposta no artigo, não
seria usurpação de poder alheio, e sim cumprimento do dever. A legitimidade da
judicialização da política estaria assentada na presunção de que, ante o vácuo
deixado pela desmoralização do mundo político, se tornou incumbência
irrenunciável dos magistrados assumir o papel de intérpretes dos interesses da
sociedade.
Do mesmo modo, o artigo Intervenção, legalidade,
legitimidade e estabilidade pretende demonstrar que a atual crise não pode ser
resolvida pelos próprios políticos, pois a maioria estaria comprometida somente
em salvar-se, razão pela qual as Forças Armadas teriam total legitimidade para
intervir, mesmo sem amparo legal. Segundo essa concepção, nem o Legislativo nem
o Executivo teriam mais condições de continuar seu trabalho, carcomidos que
estão pela corrupção e a perda de credibilidade, restando aos militares assumir
esse papel, a exemplo do que aconteceu em 1964. As Forças Armadas, segundo se
depreende do texto, não agiriam dessa forma por gosto, e sim pelo dever de
defender a Pátria e restaurar a lei e a ordem.
O pensamento expresso por esses dois artigos, que nem de
longe é ocasional ou isolado, é fruto da desorientação causada pela sensação de
que nenhum político presta, criada especialmente pelo messianismo de alguns dos
próceres da luta contra a corrupção no Judiciário e no Ministério Público. É
também sequela do empobrecimento da atividade política, sobretudo graças ao
presidencialismo de cooptação implantado pelos governos lulopetistas.
Sem lideranças políticas claras e diante de tantos
escândalos, parece a muitos cidadãos que só lhes resta depositar sua confiança
em quem, justamente por não depender de voto, se propõe a assumir a tarefa de
mediar os interesses da sociedade de maneira isenta, justa e moralmente
incontestável. Trata-se necessariamente de solução autoritária, uma vez que não
há como recorrer de decisões nem dos altos magistrados nem, muito menos, dos
chefes militares.
Deve-se, portanto, tomar cuidado com o que se deseja:
malgrado o País esteja farto dos políticos, razão pela qual se tornam sedutoras
as propostas de superação da crise que deles prescindam, é somente por meio da
atividade política – exercida por representantes eleitos pelo voto direto – que
a democracia verdadeiramente se manifesta e, assim, as crises são superadas,
sem que nenhuma liberdade seja sacrificada no altar da salvação nacional.
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