Do UOL
Show de bandas de rock e de metal como Iron Maiden, Black
Sabbath, Ghost e Slayer correm mesmo o risco de serem censurados no Brasil?
Essa semana fãs ficaram apreensivos com a possibilidade apontada em um projeto
de lei encaminhado à Câmara dos Deputados. Há dois pontos importantes a se
pontuar aqui: o primeiro é que a história não é bem assim; e o segundo é que o
texto tem outras intenções por trás dessa interpretação.
Criado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), o
projeto 8615/2017 propõe uma mudança no artigo 74 do Estatuto da Criança e do
Adolescente. O texto reforça a obrigatoriedade da classificação indicativa para
qualquer apresentação ao vivo, mas um polêmico trecho acabou ganhando mais
destaque, especialmente nas redes sociais: a proibição de "profanação de
símbolos religiosos" em eventos e apresentações.
Feliciano propõe a
seguinte emenda:
"§ 2º. Não será permitido que a programação de TV,
cinema, DVD, jogos eletrônicos e de interpretação --RPG, exibições ou
apresentações ao vivo abertas ao público, tais como as circenses, teatrais e
shows musicais, profanem símbolos sagrados.".
A proposta abriu uma discussão: Jogos de videogame como
"Assassin's Creed" e "Castlevania", filmes que parodiam a
bíblia, como "A Vida de Brian", e até shows que fazem referências a
símbolos religiosos estariam de fato ameaçados no país?
Organizações que acompanham direitos humanos defendem que o
projeto abre, sim, espaço para a proibição de qualquer expressão artística,
incluindo os shows.
"Não cabe ao Estado fazer um tipo de fiscalização desse
tipo. Isso abre um caminho perigoso para a prática de censura", defende a
Beatriz Barbosa, coordenadora do coletivo Intervozes, que integra o comitê que
monitora, junto com o Ministério da Justiça, o trabalho de classificação
indicativa no país.
Ao UOL Feliciano diz
receber muitas denúncias de jogos violentos --"mas não sei os nomes",
diz-- e, após ser apresentado pela reportagem à banda Ghost, cujo vocalista se
veste como um papa zumbi, afirmou achar a provocação desnecessária.
Porém, o deputado deixa claro a motivação principal para o
projeto: "Não tem como proibir essas bandas. Meu projeto não é a censurar
a arte, é censurar o abuso infantil. Eu não quero que nossas crianças sejam
colocadas diante daquilo que não é para idade delas e para que as pessoas que
são religiosas não sejam profanadas a troco de nada".
Feliciano se refere à performance "La Bête", no
MAM (Museu de Arte Moderna) em São Paulo, que foi criticada por exibir nudez a
um público com crianças, e à mostra "Queermuseu", encerrada pelo
Santander Cultural, em Porto Alegre, após a acusação de que obras expostas
incitavam a pedofilia e a profanação religiosa.
"[Na mostra] Tivemos exatamente esse exemplo: pegaram
uma hóstia, que representa o corpo de cristo para os católicos, e escreveram
vagina. O código penal artigo 208 [que proíbe 'escarnecer, impedir vilipendiar
ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso' sob pena de um mês a um
ano] já prevê como crime, mas só se torna crime se alguém fizer uma denúncia.
Como em obras de arte isso não é visto como crime, fica elas por elas",
justifica.
O deputado explica
que redigiu o projeto "correndo", no calor das reações em torno dos
dois eventos artísticos.
Presidente da Comissão de Direito Infanto Juvenis da OAB-SP,
o advogado Ricardo de Moraes Cabezón avaliou que, formalmente, o "projeto
traz problemas", principalmente no trecho que viralizou sobre
"símbolos sagrados".
"É algo que precisa ser conversado melhor. Ao que
parece, sim, está se vedando algo. Daí o porquê da necessidade de se propor um
debate sobre o que seria objeto sagrado e se é o caso de proibir ou não",
explicou.
"A discussão é descabida dentro do ECA [Estatuto da
Criança e do Adolescente, direcionado a jovens até 18 anos]. Tem que ser uma
discussão mais ampla, porque ela trata de garantias fundamentais, como a
liberdade artística e religiosa", diz o advogado.
Moral e bons costumes
No texto enviado à Câmara, Feliciano reforça os
"princípios da moral e dos bons costumes" para justificar o projeto.
"O PSC, por ser um partido cristão que preza por uma sociedade mais justa
arraigada nos princípios da moral e dos bons costumes, sobretudo, da dignidade
humana, não pode nunca compactuar com tal comportamento", ele diz.
Com a experiência no comitê de classificação indicativa do
Ministério da Justiça, Beatriz Barbosa analisa: "A política de
classificação não deve passar por moral. Se assim fosse, um beijo gay não
poderia ser exibido na TV. A criança pode ver um beijo gay, não é prejudicial,
é saudável e forma a diversidade para a criança. Agora ela ver um massacre de
30 pessoas em uma cena violenta, ver uma cena de sexo explícito, uso de drogas
indiscriminado, isso tem impacto na formação dela. Por isso existe a
classificação etária", defende.
Como funciona?
A sugestão de Feliciano em obrigar a classificação
indicativa já existe na prática. Exercida pelo Ministério da Justiça e
garantida na constituição, o trabalho tem como objetivo de recomendação, e não
proibição. "Se os pais querem deixar a criança assistir a um filme às 22h,
é uma decisão da família. O papel do estado e da sociedade é informar às
famílias que aquele conteúdo não é recomendado", afirma Beatriz Barbosa.
Hoje, as emissoras de TV, produtoras de audiovisual, shows,
games e desenhos animados autoclassificam o material de acordo com a faixa
etária, seguindo as orientações do manual emitido pelo Ministério da Justiça. O
comitê faz o trabalho de avaliação e determina se a classificação condiz ou não
com o conteúdo. Nos últimos anos, 98% das obras tiveram as classificações
mantidas.
Exposições e mostras de artes visuais não têm
obrigatoriedade da classificação indicativa --e também não são citados no
Projeto de Lei do deputado--, mas algumas instituições já adotam o critério da
autoclassificação com base no mesmo manual.
E é nessa área que Feliciano guarda sua maior crítica.
"Não consigo entender essa arte moderna. Com todo respeito, é lixo. Tem
que encher os olhos e o coração, isso é arte. Que arte é essa em que um Pollock
vomita numa tela?", questiona.
O texto apresentado pelo deputado está, atualmente, anexado
a projetos semelhantes e outros mais antigos. Nesses casos, a tramitação
acontece em conjunto. Feliciano diz que vai pedir celeridade na discussão.
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