Artigo de Luiz Sergio Fernandes de Souza, O Estado de
S.Paulo
Assiste-se, na atual cena político-institucional brasileira,
a uma situação de impasse. De um lado, a necessidade da renovação política –
diante do grave quadro de deterioração da vida partidária no País – e, de
outro, a notória incapacidade de superação da crise, à falta de mecanismos que
garantam a efetiva participação popular no processo político, sem a qual não
haverá mudança substantiva. E as dificuldades no campo das relações econômicas,
das ações voltadas para a educação, a saúde, a habitação e a segurança pública
– para citar alguns exemplos – também se explicam na base do mesmo diagnóstico:
ausência de adesão da sociedade a um modelo político historicamente construído
de cima para baixo. (Editorial O altar da salvação nacional).
Frustradas as expectativas em torno da representação
política, passou o Poder Judiciário a assumir, em certa medida, papéis
tradicionalmente reservados ao Poder Legislativo. O controle jurisdicional da
moralidade administrativa substituiu formas de legitimação finalista,
pertencentes à esfera da ética política, por uma disciplina dos meios,
estabelecida em regras próprias, autárquicas, diferenciação que mostra um
déficit da prestação do jurídico para o político. Vale dizer, conquanto possa o
político fundar o jurídico (precisamente como se deu com o alargamento do papel
da jurisdição na Constituição de 1988), o jurídico não pode fundar o político
(ressalvada a concepção jusnaturalista).
O Judiciário, de fato, vem sendo chamado a arbitrar a
política, o que dá mostra da incapacidade do Parlamento de assumir o papel que
lhe cabe. Sucede que, ao aceitar o desafio, a Justiça põe-se na mira da
retórica política, que passa a desqualificar a atividade jurisdicional sob o
argumento da ausência de legitimidade e imparcialidade. A artimanha de certos
políticos, diante das acusações criminais que lhes são feitas, pode ser
entendida neste contexto. Aproveitando-se de uma certa borradura no limite
entre o jurídico e a política, a autodefesa coloca em crise a autoridade do julgador,
a quem o réu passa a interpelar como se houvesse um debate.
A estratégia, assim descrita, articula-se de duas formas.
Primeiramente, trata-se de levar para o campo jurídico a ação política, cujo
discurso exige competências próprias, às quais nem sempre se ajusta o discurso
judicial. Com isso, interpreta-se como arbítrio aquilo que é discricionariedade
do julgador (os casos de desobediência civil ilustram bem a dificuldade do
Judiciário em dar respostas a esse tipo de ação instrumental).
Depois, procura-se “editar” a cena judicial a fim de
construir, perante a opinião pública, a imagem do homem perseguido, mártir das
causas populares.
O agir estratégico, no caso, cumpre duas funções. Do prisma
processual, oferece meios para a ressignificação dos fatos, sedimentando o
caminho para a absolvição do réu. De outro ângulo, na interface com a opinião
pública e a grande mídia, ao promover a desconstrução da autoridade do juiz,
colocando em crise a chamada legitimação pelo procedimento, a ação instrumental
permite devolver ao Legislativo e ao Executivo o protagonismo da cena política.
Mas esta retroalimentação do sistema político, cujo repertório já se revelara,
no momento anterior, insuficiente para atender às demandas sociais, longe de
resolver o impasse da vida político-institucional brasileira, aprofunda a
crise.
Nesse quadro de incertezas, em que também se inscrevem a
judicialização da política e a narrativa da politização do Judiciário, até
mesmo a atuação jurisdicional que se desenvolva nos moldes clássicos pode ser
confrontada pelo discurso deslegitimador, sem que o Judiciário, não
familiarizado com os códigos da política, se veja em condições de dar
tratamento adequado a esse tipo de argumentação. O discurso do golpe, que
cresce à medida que se aproxima o pleito eleitoral de 2018, orienta-se
precisamente nessa direção.
Quer-se fazer crer que há uma ditadura do Judiciário no
País, pois a magistratura, que não tem mandato popular, ao chamar para si a
atividade política, investe contra a separação dos Poderes, violando princípio
fundamental da República. A falácia material não resiste ao exame da teoria
política e da teoria geral do Estado.
Dividem-se as funções do Estado, nunca o poder mesmo,
indivisível por definição. Golpe de Estado haveria se fosse dissolvido o
Parlamento ou anulado o Executivo, hipótese na qual o sistema deixaria de
reconhecer a si próprio. Intervencionismo judicial na vida política do País
existiria se o Judiciário, abandonando a função de dizer o Direito quando
provocado, passasse a legislar ou a gerir a coisa pública.
Ao afirmar, a esta altura da grave crise brasileira, que
estaria em curso um plano para tornar inviáveis candidaturas nas eleições de
2018, busca-se, mais uma vez, desqualificar a legitimidade racional para lançar
um apelo à emoção, o que remete a formas de legitimidade carismática, típicas
do populismo. Se as práticas político-partidárias foram cooptadas por
infratores da lei, se o sistema político se viu colonizado pela ação dos que
pretendem destruir a política, sem condições de desenvolver mecanismos de
reconhecimento e diferenciação, cabe ao Estado, uno e indivisível, lançando mão
do que resta de racionalidade, cumprir o seu papel. E o Judiciário terá de
fazê-lo por meio de códigos próprios, tratando como ilícito (conduta para a
qual a norma prevê sanção) o que os réus querem ver reconhecido como mera
dissensão político-ideológica.
*Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre e
doutor em direito (USP), é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em
direito da PUC-SP
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