Da ISTOÉ
Por que mais que cada um dos lados diga o contrário, os
separatistas catalães e o Estado espanhol deram nos últimos dias uma lamentável
demonstração de intolerância. Os primeiros fizeram o plebiscito na marra e se
recusaram a dialogar em níveis institucionais. Os segundos, tratados como os “imperialistas
de Madri”, reprimiram violentamente as votações, o que só fez atiçar os ânimos
pró-independência. É impossível dizer como essa história irá acabar. Qualquer
que seja o desfecho, ela deixou uma dura lição: perdem todos, sejam eles
catalães ou “imperialistas”.
A sanha separatista dos catalães não é apenas resultado de
um movimento secular. Ela está inserida em um contexto que provocará cada vez
mais fraturas. Os pais desse novo nacionalismo são bem conhecidos: Donald Trump
e o Brexit, como ficou conhecido o movimento que levou o Reino Unido a decidir
pela saída da União Europeia. Trump e seu patriotismo canalha despertaram uma
extrema-direita que deseja expurgar imigrantes e desglobalizar o planeta. O
Brexit enterrou a utopia da comunhão europeia e de um mundo sem fronteiras.
Embora os progressistas catalães afirmem que, no seu caso
particular, o que está em jogo é a preservação de identidades locais, não se
pode esconder o fato de que o nacionalismo é irmão da intolerância. Quando eu
desfraldo a minha bandeira particular, geralmente dou as costas para o outro
que julgo ser diferente. O pensamento único está elevando os níveis de ódio em
todo o planeta e nutrindo um fanatismo que poderá trazer consequências
devastadoras. Na semana passada, analistas das duas correntes, separatistas
catalães ou não, temiam o risco de conflitos mais sérios. Basta um dos lados
atirar a primeira pedra – ou apertar o primeiro gatilho.
A fragmentação é uma tendência mundial que não será
refreada. Em 1947, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, contavam-se 67
Estados soberanos. Hoje são 195. Não vai demorar para chegarem a 200. E daí
para mais. A história ensina que campanhas separatistas são quase sempre
traumáticas. Nem sequer é preciso recuar muito no tempo. Em 2008, o Kosovo
recebeu apoio da Otan, braço militar das potências ocidentais, numa guerra para
se separar da Sérvia que provocou mais de 10 mil mortes. Com quase dois milhões
de habitantes, a maioria de origem étnica albanesa, o Kosovo declarou
unilateralmente sua independência, mas países como Rússia e China não a
reconheceram. Apenas em 2010 a Corte Internacional de Justiça, vinculada à ONU,
declarou que a separação teve respaldo legal, mas as feridas continuaram
abertas ainda por muito tempo.
Os defensores dos movimentos por independência argumentam
que há correntes diferentes de separatismos. Aquelas baseadas em racismo,
nativismos simplórios e muitos outros ismos são ilegítimas que só trazem guerra
e destruição. Todas as outras que se opõem a governos centrais opressores
merecem ser levadas adiante. É o caso dos movimentos de libertação africanos
contra o colonialismo ou das reações nacionalistas diante do império soviético.
O problema se dá quando as motivações não são tão explícitas ou se as intenções
são dúbias. Que entidade irá arbitrar a questão? A ONU, lembre-se, é um
organismo internacional de voz cada vez mais tênue e não há instituição no
mundo capaz de se colocar acima do bem e do mal. A própria União Europeia se vê
enfraquecida em tempos de Brexit e da crise dos imigrantes. Na França, Marine
Le Pen, a representante da Frente Nacional, defende um referendo para discutir
a saída da França da União Europeia, processo apelidado de “Frexit”.
O projeto federalista da União Europeia consolidou-se depois
da Segunda Guerra Mundial como um antídoto contra o veneno do nacionalismo. A
ideia era um bloco comum que representaria a paz e a colaboração num mundo sem
fronteiras. A consolidação de valores ocidentais, como a economia de mercado e
a democracia representativa, parecia imperturbável. O problema é que a história
não é estática. No século 21, vieram a crise da zona do euro, que produziu o
maior contingente de desempregados no continente em seis décadas, o drama dos
refugiados e seus milhares de miseráveis que gritaram por socorro no Velho
Continente, e o avanço do terrorismo, com os massacres perpetrados
principalmente pelo Estado Islâmico contra cidadãos europeus. As novas mazelas
reacenderam a xenofobia e o temor de tudo que parece diferente. Para se proteger
contra esses movimentos, os nacionalistas fecham fronteiras, erguem barreiras.
O próximo passo é clamar por independência e isolar-se em seu próprio universo.
Nacionalismo inspira nacionalismo. Apesar de ser o mais
vistoso, a movimento separatista da Catalunha não é o único na Europa. Em
Veneza, capital do Vêneto, região ao norte da Itália, há uma série de
iniciativas em prol da volta da Sereníssima República de Veneza. Soberana até o
século 18, Veneza debate agora a possibilidade de se tornar novamente uma
república federal e soberana. Todos os meses, manifestantes tomam as ruas para
apoiar o direito de autodeterminação. Fora da Europa, o separatismo também
encontra adeptos. No Canadá, o Parti Québécois coloca como seu principal
objetivo fazer da província de Quebec um país. Com mais de 8 milhões de
habitantes, que majoritariamente usam o francês como primeiro idioma, Quebec é
a segunda província mais populosa do Canadá. Há dois anos, um manifestante
separatista foi ferido em confronto com a polícia. Por ora, as tensões estão
adormecidas, mas podem despertar a qualquer momento.
O desfecho do movimento por independência da Catalunha pode
ser o rastilho de uma revigorada onda separatista global. Caso o afastamento do
governo central espanhol vingue, é provável que novas correntes por emancipação
surjam principalmente na Europa e na própria Espanha. Se isso acontecer, o
mundo mergulhará em uma nova era de instabilidade e incertezas.
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