sábado, 7 de outubro de 2017

OS LIMITES DA INTOLERÂNCIA

Da ISTOÉ
Por que mais que cada um dos lados diga o contrário, os separatistas catalães e o Estado espanhol deram nos últimos dias uma lamentável demonstração de intolerância. Os primeiros fizeram o plebiscito na marra e se recusaram a dialogar em níveis institucionais. Os segundos, tratados como os “imperialistas de Madri”, reprimiram violentamente as votações, o que só fez atiçar os ânimos pró-independência. É impossível dizer como essa história irá acabar. Qualquer que seja o desfecho, ela deixou uma dura lição: perdem todos, sejam eles catalães ou “imperialistas”.
A sanha separatista dos catalães não é apenas resultado de um movimento secular. Ela está inserida em um contexto que provocará cada vez mais fraturas. Os pais desse novo nacionalismo são bem conhecidos: Donald Trump e o Brexit, como ficou conhecido o movimento que levou o Reino Unido a decidir pela saída da União Europeia. Trump e seu patriotismo canalha despertaram uma extrema-direita que deseja expurgar imigrantes e desglobalizar o planeta. O Brexit enterrou a utopia da comunhão europeia e de um mundo sem fronteiras.
Embora os progressistas catalães afirmem que, no seu caso particular, o que está em jogo é a preservação de identidades locais, não se pode esconder o fato de que o nacionalismo é irmão da intolerância. Quando eu desfraldo a minha bandeira particular, geralmente dou as costas para o outro que julgo ser diferente. O pensamento único está elevando os níveis de ódio em todo o planeta e nutrindo um fanatismo que poderá trazer consequências devastadoras. Na semana passada, analistas das duas correntes, separatistas catalães ou não, temiam o risco de conflitos mais sérios. Basta um dos lados atirar a primeira pedra – ou apertar o primeiro gatilho.
A fragmentação é uma tendência mundial que não será refreada. Em 1947, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, contavam-se 67 Estados soberanos. Hoje são 195. Não vai demorar para chegarem a 200. E daí para mais. A história ensina que campanhas separatistas são quase sempre traumáticas. Nem sequer é preciso recuar muito no tempo. Em 2008, o Kosovo recebeu apoio da Otan, braço militar das potências ocidentais, numa guerra para se separar da Sérvia que provocou mais de 10 mil mortes. Com quase dois milhões de habitantes, a maioria de origem étnica albanesa, o Kosovo declarou unilateralmente sua independência, mas países como Rússia e China não a reconheceram. Apenas em 2010 a Corte Internacional de Justiça, vinculada à ONU, declarou que a separação teve respaldo legal, mas as feridas continuaram abertas ainda por muito tempo.
Os defensores dos movimentos por independência argumentam que há correntes diferentes de separatismos. Aquelas baseadas em racismo, nativismos simplórios e muitos outros ismos são ilegítimas que só trazem guerra e destruição. Todas as outras que se opõem a governos centrais opressores merecem ser levadas adiante. É o caso dos movimentos de libertação africanos contra o colonialismo ou das reações nacionalistas diante do império soviético. O problema se dá quando as motivações não são tão explícitas ou se as intenções são dúbias. Que entidade irá arbitrar a questão? A ONU, lembre-se, é um organismo internacional de voz cada vez mais tênue e não há instituição no mundo capaz de se colocar acima do bem e do mal. A própria União Europeia se vê enfraquecida em tempos de Brexit e da crise dos imigrantes. Na França, Marine Le Pen, a representante da Frente Nacional, defende um referendo para discutir a saída da França da União Europeia, processo apelidado de “Frexit”.
O projeto federalista da União Europeia consolidou-se depois da Segunda Guerra Mundial como um antídoto contra o veneno do nacionalismo. A ideia era um bloco comum que representaria a paz e a colaboração num mundo sem fronteiras. A consolidação de valores ocidentais, como a economia de mercado e a democracia representativa, parecia imperturbável. O problema é que a história não é estática. No século 21, vieram a crise da zona do euro, que produziu o maior contingente de desempregados no continente em seis décadas, o drama dos refugiados e seus milhares de miseráveis que gritaram por socorro no Velho Continente, e o avanço do terrorismo, com os massacres perpetrados principalmente pelo Estado Islâmico contra cidadãos europeus. As novas mazelas reacenderam a xenofobia e o temor de tudo que parece diferente. Para se proteger contra esses movimentos, os nacionalistas fecham fronteiras, erguem barreiras. O próximo passo é clamar por independência e isolar-se em seu próprio universo.
Nacionalismo inspira nacionalismo. Apesar de ser o mais vistoso, a movimento separatista da Catalunha não é o único na Europa. Em Veneza, capital do Vêneto, região ao norte da Itália, há uma série de iniciativas em prol da volta da Sereníssima República de Veneza. Soberana até o século 18, Veneza debate agora a possibilidade de se tornar novamente uma república federal e soberana. Todos os meses, manifestantes tomam as ruas para apoiar o direito de autodeterminação. Fora da Europa, o separatismo também encontra adeptos. No Canadá, o Parti Québécois coloca como seu principal objetivo fazer da província de Quebec um país. Com mais de 8 milhões de habitantes, que majoritariamente usam o francês como primeiro idioma, Quebec é a segunda província mais populosa do Canadá. Há dois anos, um manifestante separatista foi ferido em confronto com a polícia. Por ora, as tensões estão adormecidas, mas podem despertar a qualquer momento.
O desfecho do movimento por independência da Catalunha pode ser o rastilho de uma revigorada onda separatista global. Caso o afastamento do governo central espanhol vingue, é provável que novas correntes por emancipação surjam principalmente na Europa e na própria Espanha. Se isso acontecer, o mundo mergulhará em uma nova era de instabilidade e incertezas.
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