Da ISTOÉ
A realidade se impôs sobre a imaginação no carnaval deste
ano. Desde 1989, quando a Beija-Flor de Nilópolis desfilou, no Rio, com seus
“Ratos e urubus: larguem a minha fantasia” e um Cristo censurado, não se
anunciava uma festa como essa, tão orientada para denunciar as grandes mazelas
nacionais, como a miséria e a corrupção e para avançar, no ritmo do samba, nas
referências ao atribulado momento político. O que se verifica neste ano é que a
crítica social se aprofundou, assim como a consciência da crise moral que
assola o país. A folia se politizou. No Rio de Janeiro, os protestos sociais
aparecem em pelo menos três escolas de samba, que se sobressaem por apresentar
enredos com questionamentos ao difícil momento nacional: Beija-Flor, Estação
Primeira da Mangueira e Paraíso do Tuiuti. Em São Paulo, a Império da Casa
Verde, com seu enredo baseado em “Os Miseráveis”, livro de Victor Hugo, destaca
a luta contra a corrupção e os privilégios restritos a uma pequena parcela da
população. Também os blocos enchem as ruas cariocas e paulistanas de gritos de
guerra contra o cerceamento da liberdade, a volta da febre amarela, os auxílios
dados aos juízes, a intolerância religiosa e de gênero e o preconceito racial.
Fundada há 90 anos, a Estação Primeira de Mangueira,
estréia, em 2018, no quesito samba politizado com o enredo “Com dinheiro ou sem
dinheiro, eu brinco” — e o alvo principal é o prefeito do Rio, Marcelo
Crivella. “O momento político que o Brasil vive é muito delicado. Há uma
influência da onda conservadora que extrapola a cultura da sociedade”, afirma o
carnavalesco Leandro Vieira. “A chegada do prefeito Crivella ao Rio de Janeiro
é isso. Ele representa o avanço da mistura explosiva entre política e religião,
é o prefeito de uma cidade que tem uma festa libertária que ele não gosta.” O
pomo da discórdia entre a Mangueira e Crivella é o corte das verbas destinadas
às escolas de samba do Rio no carnaval deste ano.
Segundo Vieira, o prefeito tentou justificar a medida com o
argumento de que o dinheiro seria destinado para as creches municipais, o que
revela uma visão errada do carnaval, que além de representar a cultura popular
é uma enorme fonte de receitas para a cidade do Rio. “O enredo da Mangueira é
um tributo à cidade, à sua essência festiva, seu caráter plural, mundano e
livre. A Mangueira veio dizer que a rua é do povo e nosso enredo é um tributo à
liberdade — tudo o que o prefeito não quer”, diz Vieira.
O tom mais politizado e crítico dos desfiles deste ano, na
avaliação dos próprios carnavalescos, tem relação com a renovação do público da
festa, que busca uma maior conexão com o mundo real. Com seu enredo “Monstro é
aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, a
Beija-Flor pretende claramente atingir uma plateia mais jovem, que vai para o
Sambódromo mas mal assiste aos desfiles porque não se interessa pelos temas
apresentado pelas escolas. “Houve uma pasteurização do espetáculo que não gera
atração”, afirma o coreógrafo Marcelo Missailidis, responsável pela concepção
cênica da Beija-Flor. ”A preocupação de nosso enredo não foi só com o potencial
cênico, mas também com um conteúdo que interesse.
Falamos das preocupações de hoje: medo de viver em cidade
grande, falta de confiança nos representantes políticos, abandono, angústia da
população em todas as camadas sociais.” Em outras palavras, o desfile da escola
poderia ser considerado uma grande manifestação política com invólucro
artístico. E qual o significado do rato gigante que aparece em um dos carros
alegóricos? “É o maior símbolo de corrupção do Estado do Rio. O rato representa
toda a imundície, a sujeira da política hoje em dia. Aquilo que corrói a ética.
Percebemos hoje que as decisões políticas sempre foram rodeadas por corrupção e
ganância”, afirma Missailidis.
O poder do riso
“O riso é uma arma muito poderosa”, diz o pesquisador do
carnaval e professor de marketing de massa da Universidade Mackenzie José
Maurício Conrado, para ele, o carnaval já traz embutida uma crítica social. “O
desfile da Beija-Flor em 1989 foi emblemático por conta do período histórico em
que o País se encontrava”, afirma, relembrando a expectativa nacional pela
redemocratização com as eleições diretas para presidente, que ocorreram no
mesmo ano. Em 2018, ano eleitoral e de polarizações ideológicas, o ambiente
social e político se tornaram perfeitos para esse tipo de abordagem. “O
carnaval tem essa veia de crítica social. É normal que isso aconteça. Mas
parece que este ano ele está mais sintonizado com essas questões”, afirma.
“Elas apareceram com muita força porque há mudanças em curso.”
O escritor e sambista Haroldo Costa, outro especialista em
carnaval, afirma que temas políticos em sambas enredo são frequentes: “Em
diversas oportunidades as escolas realizaram enredos com alusões ou fatos
políticos”, afirma. A lista remonta à década de 1950, com “O Grande
Presidente”, da Mangueira, em 1956, e segue com “Heróis da Liberdade”, da
Império Serrano, em 1969, “Kizomba, Festa e Raça”, da Vila Isabel, de 1988 e
“Prestes, o Cavaleiro da Esperança”, da Grande Rio, em 1998. Costa faz questão
de afirmar que as escolas de samba não são alienadas, como alguns insistem.
Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos enredos focaram na presença do Brasil
no combate ao nazismo, lembrou. Segundo ele, “não há a menor dúvida de que as
escolas têm contribuído de modo efetivo para realçar episódios e personagens
que os livros escolares pouco ou nada registram.”
A questão racial e o imperativo da liberdade do homem
entrará em discussão no samba da Paraíso do Tuiuti. O enredo “Meu Deus, Meu
Deus, Está Extinta a Escravidão?” tem como pano de fundo a Lei Áurea e trata da
exploração do homem pelo homem no decorrer das civilizações. “Mostra que o
negro que era açoitado ficou preso na favela e é marginalizado. Acorda às 3h da
madrugada para pegar o ônibus às 5h e ir trabalhar por menos de um salário
mínimo, diz Thiago Monteiro, diretor de carnaval da escola. “As críticas não
são personificadas em um governo, mas sim em um sistema no qual as grandes
corporações exploram o ser humano pagando salários indignos. Nosso enredo é, na
verdade, um grande tratado da exploração humana”, afirma.
Pátria amada
“Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados
da pátria que os pariu” BEIJA-FLOR DE NILÓPOLIS
Vejo a liberdade aprisionada
Teu livro eu não sei ler, Brasil!
Mas o samba faz essa dor dentro do peito ir embora
Feito um arrastão de alegria e emoção o pranto rola
Meu canto é resistência
No ecoar de um tambor
Vêm ver brilhar
Mais um menino que você abandonou
Oh pátria amada, por onde andarás?
Seus filhos já não aguentam mais!
Você que não soube cuidar
Você que negou o amor
Vem aprender na Beija-Flor
Referência ao panelaço
Em São Paulo, a escola de samba Império de Casa Verde
ocupará a avenida com o propósito de fazer o público se divertir e pensar. O
tema do enredo é “O povo: a nobreza real” e trata da revolução francesa. Mas é
impossível ouvir a composição e não relacionar com o cenário que se vê no
Brasil. O tema é histórico e atual: muitos com pouco e poucos com muito. As
diferenças sociais são bem destacadas no enredo, nos carros alegóricos e nas
fantasias. O samba canta as regalias das classes dominantes e a pobreza do
povo, que se revolta contra essa situação e provoca uma revolução. No desfile,
a ideia da escola é mostrar que o povo venceu os desafios e terminou
comemorando em uma grande festa: o carnaval, é claro. De acordo com o
carnavalesco Jorge Freitas, a relação com o período histórico e a atual
situação do Brasil foi proposital, mas ele afirma que a escola não quer tomar nenhum
partido. Segundo ele, a intenção é mostrar que o povo unido é forte. “Só mudou
o tempo. O povo, no boca a boca, tem força. Se ele se unir, no nosso reino há
justiça”, afirma. Em um dos carros, inclusive, a escola irá trazer o que ficou
conhecido como “panelaço”: “Quem estiver assistindo, vai estar se vendo. É
histórico e contemporâneo”, afirma. Freitas também explica que uma das
obrigações da arte é trazer uma reflexão para a sociedade e que a intenção dele
não é ser nem “coxinha” nem “petralha”, mas mostrar que muitos anos se passaram
e pouca coisa mudou em relação à liberdade, igualdade e fraternidade, que é o
lema da revolução francesa. “O povo se manifesta através da alegria. Quem dera
que eu não precisasse falar disso em um enredo”. Um dos onze compositores do
samba da Império, Luciano Godoi, explica a intenção da letra: “A gente queria
passar, de alguma forma, essa mensagem de que isso aconteceu lá atrás, mas está
acontecendo hoje”. Em determinado momento, a música convoca: “Vem pra rua”,
slogan que ficou conhecido nas manifestações de 2013. De acordo com Godoi, “não
é que a gente quis exaltar um grupo, mas é para mostrar que quando o povo vai
para a rua, ele consegue tomar as rédeas.”
No pré-carnaval de São Paulo, o bloco Acadêmicos do Baixo
Augusta, um dos maiores e mais disputados da capital, trouxe a mensagem “É
proibido proibir”, referência aos movimentos de contestação de 1968. Em vários
momentos era possível ouvir os foliões cantando músicas de protesto como “Para
não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, e “Apesar de você”, de
Chico Buarque. As canções ficaram famosas durante o período da ditadura
militar, quando a censura atingia também o carnaval. Cheios de artistas, os
trios elétricos do bloco passaram pela Rua Consolação, no centro de São Paulo,
com discursos poderosos sobre liberdade de expressão. Em um dos carros,
artistas de grupos de teatro da região central fizeram uma performance em que
apareciam nus. A cantora Maria Rita cantou “Como nossos pais”, música de
Belchior que se tornou clássica ao ser interpretada pela mãe dela, Elis Regina.
Em vários momentos, os foliões também participaram das manifestações e gritavam
“Fora Temer” e “Volta Lula”.
A hora da mudança
“Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!” ESTAÇÃO PRIMEIRA
DA MANGUEIRA
Chegou a hora de mudar
Erguer a bandeira do samba
Vem a luz à consciência
Que ilumina a resistência dessa gente bamba
Pergunte aos seus ancestrais
Dos antigos carnavais, nossa raça costumeira
*Outrora marginalizado já usei cetim barato*
*Pra desfilar na mangueira*
A minha escola de vida é um botequim
Com garfo e prato eu faço meu tamborim
Firmo na palma da mão, cantando laiálaiá
Sou mestre-sala na arte de improvisar
Ôôôô somos a voz do povo embarque nesse cordão
Pra ser feliz de novo
Carna tríplex
O ex-presidente condenado a 12 anos e 1 mês de detenção
também é mote da folia. Foi marcado para o terça-feira 13, às 14h, o “Carna
Tríplex”. Organizado pelo grupo Mobilização Brasil, o evento acontecerá em
frente ao Edifício Solaris, no Guarujá, onde fica o apartamento que Lula
recebeu indevidamente da OAS. Não será a primeira vez que o condomínio vira
palco de uma manifestação de foliões. No sábado 3, jovens simpatizantes de Lula
realizaram um churrasco em frente ao condomínio para homenagear o
ex-presidente. O evento foi batizado de “Churras no Tríplex do Lula” teve
carne, farofa e camisetas vermelhas.
Além das escolas de samba e dos blocos, outra forma de
politizar a folia apareceu nos centros de comércio popular, caso da região da
Rua 25 de março, em São Paulo. Como em anos anteriores, máscaras de políticos
estavam à venda junto às tradicionais fantasias para os foliões. As figuras que
mais aparecem são os ex-presidentes Lula e Dilma, o juiz Sergio Moro, o
“japonês da Federal” e o ministro do STF Gilmar Mendes. Ainda que as vendas não
estejam tão em alta, as máscaras, que custam a partir de R$ 4, continuam
funcionando como alegoria pessoal para os foliões que querem brincar e
protestar ao mesmo tempo.
Vem pra rua
“O povo: a nobreza real” IMPÉRIO DA CASA VERDE
“Quem sou eu na ‘selva de poder’?
Mais um ‘bobo da corte’ a padecer
Sem desfrutar da riqueza
Que a realeza tem pra oferecer
No ‘Reino das Regalias’
A poesia é nossa arma pra lutar
Contra o carrasco da injustiça
Na monarquia impera a corrupção
E nos banquetes, toda a fidalguia
Desperta a insatisfação
É chegado o momento, surge um movimento
A batalha acabou de começar
Na alma da gente a esperança continua
Vem pra rua
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