Estou em Moscou. Às vezes, de longe temos a ilusão de ver
melhor o Brasil. Mas não há garantia de que essa situação complexa seja
desvendada de fora.
Um dos temas que às vezes nos aproximam do mundo é esta
sensação de que o centro político está em declínio. Mesmo assim, corremos o
risco de estar falando de centros políticos diferentes, de declínios
impulsionados também por forças distintas.
No Brasil, o principal estímulo para tratar do assunto são
as pesquisas eleitorais. Nos Estados Unidos, é um exame mais prolongado da
retirada de cena de políticos democratas e republicanos mais próximos do
centro, mais propensos ao diálogo e a soluções negociadas. Ao longo das
eleições, seu número vem caindo.
Na Europa, sucessivas derrotas da social-democracia acionaram
o alarme para o crescimento das forças demagógicas, centradas na repulsa aos
imigrantes e nas consequências da globalização. O Brexit pode ser atribuído a
essa tendência, assim como a eleição de Trump nos EUA.
O centro difere da esquerda na medida em que não se baseia
no conflito para crescer. E difere da direita ao afirmar que é necessário
atenuar as distorções sociais que o capitalismo produz no seu curso triunfante.
Se for realmente isso, o centro parece ter perdido
substância ao acreditar que as mudanças sociais e culturais na globalização
seriam resolvidas, naturalmente, pelo crescimento econômico. E errou mais ainda
ao subestimar a temática nacional, supondo que a mística em torno da terra e da
cultura fosse apenas nostalgia.
Uma das incaraterísticas do centro é apostar numa crescente
liberdade, envolvendo todos os grupos minoritários. Nesse ponto, a esquerda que
dominou o Brasil foi um alento para muitas lutas identitárias, também
contempladas por Barack Obama.
O problema é que, à medida que essas lutas cresceram,
declinou a energia necessária para uma coesão nacional. Muitas lutas
identitárias se veem em confronto com a sociedade abrangente. Fixam-se no que
chamam de seu território e seus valores próprios.
Como recuperar a ideia de um projeto nacional, algo que
envolva a todos, apesar de suas diferenças?
Ainda assim, esses elementos típicos da globalização me
parecem ter um peso relativo diante do fator corrupção. Centro, direita e
esquerda naufragaram no combate direto à roubalheira.
Nem todas as forças foram colhidas com a mesma intensidade.
E nenhuma delas foi capaz de encarnar as aspirações sociais de transparência e
condenação dessa prática.
Se alguma o fizesse, comeria o pão que o diabo amassou, pois
bateria de frente com uma cultura enraizada no meio político. Pagaria com o
isolamento e a hostilidade na convivência cotidiana. Mas de certa forma
sobreviveria não só para contar a história, mas para juntar os cacos e
prosseguir o seu curso.
A situação do Brasil, ao que me parece, não é apenas a do
declínio do centro, mas de todas as forças organizadas que passaram pelo
furacão investigativo. As intenções originais de votos em Lula, nos níveis do
fim do século passado, sobreviveram, ao que indicam as pesquisas. Mas quando
transplantadas para nomes do seu partido caem vertiginosamente.
Os instrumentos tecnológicos à disposição revelam, no
entanto, um avanço na consciência e na participação popular. Apontam para mais
democracia, quem sabe uma complexa Atenas digitalizada.
No entanto, não aparecem os sinais de encontro entre esse
mundo horizontal e uma ideia de governo. Os últimos foram marcados também por
uma desconfiança na distribuição de renda, pelo alto preço que seus promotores
cobraram da sociedade em desvios de verba pública e assalto às empresas
estatais.
E nas últimas semanas Michel Temer enfraqueceu a ideia de
democracia, usando-a para descrever a essência de sua reação à greve,
titubeante e inepta.
Florescem no mundo, hoje, muitos governos autoritários,
sobretudo em grandes países, como aqui, precisamente porque as pessoas associam
a democracia liberal a um estado de bagunça e sonham em se tornar um “país
normal”, isto é, que não se desintegre por falta de autoridade. Parecem
preferir abrir mão de ampla liberdade pela sensação de viver num país estável.
Ao associar seus erros e trapalhadas à democracia, e não à
sua condição de remanescente de uma grande quadrilha, Temer contribui para
aumentar o desencanto com essa forma de governo.
Não parece acidental que a polarização atual caminhe para
duas personalidades fortes, que assustam o mercado. Mas o mercado, creio, é
menos vulnerável a impulsos autoritários. Ele se adapta muito melhor do que os
livres-pensadores, os que batalham pela liberdade de expressão e sonham com um
modelo de democracia ocidental num conjunto de países emergentes onde ela não é
a preferida.
Pesquisas eleitorais revelam apenas um instante. O
inquietante nelas não é exatamente a posição dos atores em disputa. O
inquietante é o que revelam da situação de fundo, bastante mais difícil de se
transformar. Não só porque é complexa, mas também porque, num momento
eleitoral, a tarefa dos candidatos não é entendê-la, mas explorá-la.
É um tipo de contradição, mais nova no Brasil: um grande
avanço tecnológico que expandiu a consciência coletiva e a decadência
assustadora do universo político, que poderia potencializá-la para grandes
saltos de qualidade.
Essa intensa troca de ideias num plano horizontal é uma
espécie de antídoto contra o autoritarismo. Mas a decomposição do mundo
político é um grande convite à sua chegada.
Não tenho fé religiosa na tecnologia. É uma ilusão avaliar
as redes apenas pelo que têm de melhor. Uma corda serve para escalar a montanha
ou para se enforcar. Daí, minha angústia.
Artigo publicado no Estadão em 15/06/2018
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