Durante a eleição municipal de 2016, o horário de
funcionamento da prefeitura de Sobral, segundo maior município do Ceará com 205
mil habitantes, foi alterado a pretexto de economizar energia. Na realidade, a
portaria instituída pelo então prefeito Clodoveu Arruda (PT) teve outro
propósito: o de mobilizar funcionários públicos para trabalhar na campanha do
irmão caçula do candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes, Ivo Ferreira Gomes,
candidato a administrar a cidade. Um verdadeiro exército de professores,
agentes de saúde e secretários municipais cumpriu a missão a contento. Trajados
de amarelo, os servidores da prefeitura bateram de porta em porta em favor da
candidatura do irmão de Ciro. Durante o corpo-a-corpo eleitoral, houve até quem
trocasse votos por água encanada. A agricultora Maria do Livramento Paiva, da
fazenda Campo Grande, distrito de Taperuaba, confessou à ISTOÉ que, para
receber água potável em sua residência, teve de “jurar fidelidade aos Gomes”,
que consistia em cabalar o maior número de votos possíveis no seio da própria
família. “Por essa água eu me despedacei arrumando voto de todo jeito”,
afirmou. O resultado não poderia ter sido diferente: Ivo foi eleito com 57,9
mil votos – 51,4% do total. No primeiro ano de mandato, durante encontro para
definir o Plano Plurianual da cidade, Ivo Gomes discursou: “Quem tem o poder
sou eu e quem não rezar na minha cartilha vai sair. Experimentem me desafiar”,
ameaçou. Os episódios são ilustrativos da influência exercida pelos Ferreira
Gomes em Sobral. Mais do que berço político de Ciro, o município se transformou
numa espécie de curral eleitoral da família. Ali, impera a lei do mais forte,
na acepção do termo.
Não foi sempre assim. Além de primogênito, Ciro Gomes era o
filho predileto de José Euclides Ferreira Gomes, o “advogado dos pobres”, como
os defensores públicos eram chamados na década de 60, em Sobral. O garoto
sempre foi considerado um virtuose. Lia muito e gostava de recitar Camões –
chegou a ganhar um concurso para viajar a Portugal. Mas o começo da vida não
foi fácil para o candidato do PST ao Planalto. Estudou em escola pública –
Colégio Dom José –, pois os pais não tinham dinheiro. Conseguiu ingressar no
Colégio Sobralense, privado, faltando apenas três anos para o vestibular. Ciro
era resiliente. Para concluir o curso de Direito em Fortaleza, onde foi
aprovado em 1º lugar, teve que morar num mosteiro de franciscanos. Motivo: o
aluguel era mais barato. A situação mudou da água para o vinho em 1976 com a
eleição do pai para a prefeitura de Sobral. Eleito, José Euclides fez um bom
mandato e se vinculou ao coronel Cesar Cals, que virou ministro das Minas e
Energia do governo João Figueiredo. A partir de então passou a mandar e
desmandar na cidade, catapultando a carreira política do filho. O município foi
a plataforma que lançou o aspirante ao Planalto a vôos mais altos, destaques
para as eleições a prefeito de Fortaleza, governo do Ceará e para a nomeação a
ministro da Fazenda do governo Itamar Franco.
Hoje, em Sobral, a família é detentora de 50% do eleitorado.
Outros 20% votariam neles por medo, segundo revelou Luiz Melo Torquato, 77,
ex-presidente do Guarany de Sobral. Torquato, que acompanha a vida política do
clã Ferreira Gomes desde suas raízes, lembra que, ao todo, a cidade já teve
seis prefeitos da família. “Ciro gosta
de falar o que o povo gosta de ouvir”, disse o empresário, emendando na
sequência uma ponta de mágoa e frustração. Ele conta que eles eram muito
amigos, mas que Ciro “se contaminou” ao se cercar “de gente grande e poderosa”.
“Ciro era muito inteligente e honesto, mas virou uma máquina mortífera com quem
passou a se opor a ele. Basta ver a rasteira que deu no ex-governador do Ceará
Tasso Jereissati e Lúcio Alcântara, homens que investiram nele sem medir
esforços e o colocou em cargos importantes que o projetou no cenário nacional e
depois foram traídos”, lamenta. Torquato
não é voz isolada. Professor de português no colégio Sobralense, hoje extinto,
o padre Osvaldo Carneiro Chaves, aos 94 anos, enrijece os músculos do rosto e
pede para mudar de assunto quando indagado sobre seu ex-aluno Ciro Gomes: “Tem
tanta gente no mundo, vamos falar de outras pessoas”, suplicou ele. Perguntado
com insistência se Ciro ao menos era um aluno aplicado, Chaves respondeu com
rispidez: “Era uma estrela, mas um aluno aplicado não se julga pelas notas e
sim pela sua capacidade de trabalho e pelo respeito ao próximo”. Contemporâneo
de Ciro no Colégio Marista Cearense, na década de 70, o engenheiro Hermenegildo
Souza Neto atesta a fama de “geniozinho de temperamento forte” do hoje
aspirante à Presidência. Conta que o presidenciável se destacava, ajudava
amigos de sala e não precisava estudar muito para tirar boas notas. “Nos dias
de provas todos queriam sentar perto dele para pescar as questões”, afirma. Mas
lamenta que Ciro “engrossou o pescoço depois que entrou na política”: “Ele se
acha melhor que todo mundo”.
Agricultora disse que, para receber água potável em sua
residência, teve de “jurar fidelidade aos Gomes”. Ou seja, votar e pedir votos
para eles
Embora, nas recentes sabatinas, tente exibir um semblante
mais sereno, Ciro mudou pouco, garantem moradores de Sobral. O jeitão explosivo
pode até permanecer em stand by durante alguns momentos, mas segue latente,
pronto para aflorar a qualquer hora. Como em setembro de 2016, quando, segundo
testemunhas, Ciro percorria o distrito de Taperuaba, distante 65 quilômetros de
Sobral, fazendo visitas e pedindo votos para o irmão Ivo. Incomodado com uma
moto que o seguia, o candidato do PDT ao Planalto desceu do carro embebido em
fúria, xingou o rapaz e tentou agredi-lo. Qual não foi sua surpresa: o
motoqueiro conhecido por Júnior era dono de um certeiro cruzado de direita.
Ciro acabou nocauteado com um único soco no rosto e precisou ser amparado por
seus seguranças. O caso foi abafado.
Em novembro do ano passado, a família de Ciro sofreu o que
seria o seu maior revés na cidade. A justiça eleitoral cassou o diploma de Ivo Ferreira
Gomes, por compra de votos. Na ocasião, o Ministério Público Federal também foi
favorável à cassação, mas o poder da oligarquia falou mais alto e o quadro foi
revertido no TRE, em Fortaleza. Na última semana, o MDB e o Ministério Público
Eleitoral impetraram um embargo de declaração e o processo seguiu para o TSE.
Ivo atribui as recentes desventuras à oposição. O momento para os Ferreira
Gomes não mesmo é favorável em seu berço político. Além da pendenga eleitoral,
Sobral vive uma escalada de violência, com aumento do número de homicídios e
bairros inteiros dominados por facções criminosas. De tantos mandos, o reduto
dos Ferreira Gomes no interior do Ceará virou um desmando.
“ (Ciro) Era uma estrela, mas um aluno aplicado não se julga
pelas notas e sim pela sua capacidade de trabalho e pelo respeito ao próximo”
Osvaldo Carneiro Chaves, professor de Ciro no colégio Sobralense
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