“Vamos ler menos The New York Times, e mais José
de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto
Araújo, em seu discurso de posse. Por quê?
Prestar atenção ao que diz o chanceler Ernesto Araújo tem se
mostrado tarefa penosa, mas fundamental para compreender como a
ideologia do Governo Bolsonaro está sendo construída. O diplomata foi
indicado por Olavo
de Carvalho, considerado o “guru da nova direita” brasileira, desde sua
casa nos Estados Unidos. Claramente, Araújo tem a pretensão de dar a base
intelectual ao que o bolsonarismo chama de “nova era”. Se integrantes mais
preparados do governo concordam, há dúvidas robustas para suspeitar que não.
Araújo, porém, segue firme em seu propósito, publicando artigos onde consegue
espaço.
O discurso
de posse como novo ministro de Relações Exteriores é uma falsificação
da história, com o objetivo de justificar o presente e o futuro próximo. Para
fazer parecer que a estrutura parava em pé, o chanceler usou seu grego, seu
latim e até mesmo seu tupi, abusou do recurso do name-dropping (ótima
expressão em língua inglesa para aqueles que desfiam nomes e citações para
impressionar o interlocutor), dos clássicos à cultura pop. Todos já bem mortos,
para que nenhum deles pudesse contestar a citação. Nenhuma de suas escolhas é
um acaso. Vale a pena se deter em cada uma delas porque, como já escrevi neste
espaço, os
malucos agora sapateiam no palco — e sapateiam com poder de
destruição.
Ernesto
Araújo é um personagem ainda obscuro para o Brasil, embora seja um
diplomata de carreira do Itamaraty. Em seu discurso, ele dispôs de figuras e
acontecimentos históricos, assim como artistas contemporâneos, como se eles
estivessem misturados como bonecos de plástico numa prateleira, para serem
usados ao gosto do freguês — e para o propósito do freguês. Arrancados de
seu contexto e esvaziados de conteúdo, eles foram manipulados pelo chanceler
para produzir a sua falsificação. Cada frase tem ali um objetivo.
Me detenho apenas em uma, que chamou particular atenção e
foi reproduzida várias vezes na imprensa e nas redes sociais, com a
qual abro esse artigo: “Vamos ler menos The New York Times, e mais
José de Alencar e Gonçalves Dias”. Por quê?
Não é preciso ter inteligência acima da média para perceber
que não faz nenhum sentido contrapor um dos mais importantes jornais do mundo,
com edição diária, e dois escritores do romantismo brasileiro do século 19. O
objetivo é exacerbar um nacionalismo que se ajoelha diante de Donald Trump, mas
despreza a independência do New York Times; idolatra o WhatsApp e o Facebook
de Mark Zuckerberg, mas achincalha a imprensa brasileira.
O chanceler quer menos denúncias bem apuradas e checadas
contra Bolsonaro e contra os abusos do seu governo, documentados pelo Times e
pelos principais jornais do mundo onde a imprensa é livre. Menos imprensa,
convertida declaradamente em “inimiga pública”, por Bolsonaro e seus papagaios,
porque querem falar diretamente com seus seguidores sem serem perturbados. Do
contrário, teriam que responder perguntas difíceis e explicar depósitos
de Queiroz na conta da primeira-dama.
Para não terem que prestar contas de seu governo ao público,
é preciso destruir a credibilidade da imprensa. Sim, porque um tuíte ou um
“live” no Facebook não
é prestar contas, é apenas dizer o que quer, como faz a maioria, sem correr o
risco de ser contestado com fatos e provas. O que os bolsonaristas querem fazer
parecer democracia é apenas autoritarismo e já foi usado antes por governos
totalitários, mas sem a enorme facilidade das redes sociais da internet.
A imprensa só faz sentido se fiscalizar o governo, qualquer
governo. A frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) já se
tornou clichê, mas ela é precisa: “Você tem direito a suas próprias opiniões,
mas não a seus próprios fatos”. A luta dos bolsonaristas é para inventar seus
próprios fatos, de modo que a realidade não importe nem atrapalhe seu projeto
de poder.
Mas por que José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias
(1823-1864), dois escritores do Brasil do século 19, que escreveram no Brasil
imperial, durante o reinado de Dom Pedro II?
Essa escolha é capciosa, como todas as outras. E se refere a
uma suposta identidade nacional. Alencar e Dias são expoentes do romantismo na
literatura brasileira — um na prosa, o outro na poesia. Eles viveram e
escreveram sua obra num momento muito particular do Brasil. O país se tornara
independente de Portugal,
o que significava que deixava de ser colônia dos portugueses.
Na visão dos homens daquela época (e eram majoritariamente
homens, porque as mulheres, exceto raríssimas exceções, não tinham voz
pública), era necessário criar uma identidade nacional. Para isso, seria
preciso marcar essa identidade no campo da cultura. O Brasil deveria ter, ao
mesmo tempo, uma literatura que o colocasse no mesmo patamar da Europa, que vivia a fase do
romantismo, e ser ele próprio um novo que emergia após os séculos de domínio
português. Gonçalves Dias e José de Alencar entregaram-se a essa tarefa. Não
foram os únicos, mas tornaram-se referências do romantismo que inaugurava o que
se chamou de literatura brasileira.
O chanceler de Bolsonaro exalta um momento da história do
Brasil em que as elites se empenham em criar uma identidade nacional depois de
o país ter sido colônia de Portugal. Araújo parece acreditar — ou quer que
acreditemos — que o governo Bolsonaro está promovendo “o renascimento
político e espiritual” do Brasil, como
ele escreveu em um artigo. Ou, como afirmou em seu discurso de posse:
“Reconquistar o Brasil e devolver o Brasil aos brasileiros”. Araújo quer que
acreditemos que tudo o que aconteceu entre a independência do Brasil, a de
1822 — e a nova independência do Brasil, a que ele acredita estar sendo
liderada pelo seu chefe, em 2019 — não existiu.
O ideólogo do governo parece sugerir que esse hiato de dois
séculos foi um tempo de perdição do Brasil de si mesmo. “O presidente Bolsonaro
disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que
os brasileiros profundamente sentimos”, afirma Araújo, que acredita ainda que
suas cordas vocais libertam a voz do povo. Bolsonaro seria então uma versão
contemporânea de Dom Pedro I, com sua espada em riste para libertar o Brasil.
Não mais diante do riacho Ipiranga, agora no espelho d’água do Planalto.
O chanceler acessa esse episódio em dois momentos de sua
vida, como ele mesmo relata no discurso de posse: “Eu me lembro da emoção que
eu senti pela primeira vez, quando era Terceiro Secretário (do Itamaraty), que
subi as escadas para este terceiro andar, e vi, logo ao subir a escada, o
quadro da Coroação de Dom Pedro 1º e o quadro do Grito do Ipiranga.
Imediatamente, eu, que tinha 22 anos, me lembrei de quando tinha 5 anos e assisti
maravilhado no cinema ao filme ‘Independência ou Morte’, com Tarcísio Meira e
Glória Menezes. E pensei: então tudo isso existe, né? Tudo isso existe... e
tudo isso é aqui!”.
Pois é. Em outro ponto, com a sutileza de dar alguns
parágrafos de intervalo, o admirador de Dom Pedro I e de Tarcísio Meira usa um
tuíte para comparar Bolsonaro à rainha Elizabeth II, da Inglaterra: “Vou dar um
exemplo do que temos para ouvir. É o comentário de uma pessoa que segue a minha
conta do Twitter,
que diz o seguinte... li isso ontem: ‘Antes eu não entendia o amor do povo da
Inglaterra pela rainha. Agora entendo. Quando temos alguém que ama seu país e
seu povo e os defende, ganha amor e respeito. Não conhecíamos isso antes de
Bolsonaro’”.
Em nenhum momento os indígenas são citados nominalmente no
discurso de posse do ideólogo do governo de extrema direita, o que em si já diz
bastante coisa. Mas uma das línguas indígenas, o tupi, se faz presente. De que
modo, porém? Na Ave Maria em tupi do padre José de Anchieta, jesuíta canonizado
santo pela Igreja Católica. A língua do indígena usada para catequizá-lo numa
religião alienígena às suas crenças. A escolha não é um detalhe. Sem a
experiência da cultura, que confere carne à língua e conteúdo às palavras, a
língua nada é. Apenas casca, como casca era o indígena do romantismo do século
19.
O escritor José de Alencar é o principal expoente da prosa
do que se chama “indianismo” na literatura brasileira. Em três
livros — O Guarani (1857), Iracema (1865)
e Ubirajara (1874) —, ele busca construir uma identidade
nacional fiel aos princípios do romantismo. Como o romantismo europeu é marcado
por uma ideia heroica do cavaleiro medieval, Alencar torna o indígena um
cavaleiro medieval ambientado na exuberante paisagem tropical do Brasil.
O indígena, habitante nativo que vivia na terra antes do
domínio europeu, seria o herói genuinamente brasileiro da nação que se declara
independente da metrópole. Mas com todas as qualidades atribuídas à cavalaria,
na Idade Média, transplantadas para seu corpo e sua alma. A coragem, a
lealdade, a generosidade, a partir de um ponto de vista que servia à manutenção
do sistema feudal, e o amor cortês. Para escritores da época de José de Alencar
e de Gonçalves Dias, que viviam o período pós-independência do Brasil, escrever
era um ato de patriotismo. Eles teriam de dizer com sua obra o que é “ser
brasileiro”. É também essa referência que o ideólogo do governo procura
resgatar e enaltecer.
Os negros, corpos escravizados que moviam a economia do
Brasil e serviam às suas elites, não estavam presentes como formadores de uma
identidade nacional nestes romances de fundação. Se os escritores buscavam uma
identidade nacional, ela era forjada dentro da matriz europeia. Como seria
possível escrever em língua portuguesa, a do colonizador, sem ser colonizado na
linguagem, foi uma questão crucial para a qual Alencar e outros também tentaram
dar uma resposta no século 19. Mas este é um tema longo para outra conversa.
Em artigo no Nexo, Vinícius Rodrigues Vieira,
professor-visitante do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São
Paulo (USP), afirma: “Araújo — assim como as alas mais conservadoras do
governo — ambiciona o retorno a uma identidade nacional pré-freyriana, ou
seja, antes das ideias que ficaram associadas a Gilberto Freyre. Em suma, o
ideal de sincretismo encarnado na malfadada expressão ‘democracia racial’. Não
à toa o ministro citou em seu discurso de posse o romancista José de Alencar,
cujas obras claramente buscavam no indígena harmonizado com o colonizador as
raízes de nossa nacionalidade, sem considerar o legado africano”.
“Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um
selvagem!” A frase é de D. Antônio de Mariz, fidalgo português e um dos
fundadores da cidade do Rio de Janeiro na obra de José de Alencar. Assim o
personagem é descrito em O Guarani, primeiro romance indianista do
escritor, publicado na época como folhetim, com grande sucesso: “Homem de
valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou
grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito
Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado
uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver
explorado, deixou por muito tempo devoluta”.
O “cavaleiro português no corpo de um selvagem” é Peri, um
indígena do povo Goytacá, que desde que salvou da morte Cecília, a filha do
fidalgo, um “anjo louro de olhos azuis”, é adotado pelo clã dos Mariz. Peri
passa a viver numa cabana perto da casa da família, uma espécie de castelo onde
o escritor reproduz as relações de vassalagem do feudalismo que o Brasil nunca
teve, mas parte da Europa sim.
Peri faz todas as vontades da moça, a quem serve como um cão
de estimação. Diz Isabel, outra personagem: “Pedirás a meu tio para caçar-te
outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri”.
Peri era manso, domesticado. Mas valente. Quando D. Diogo,
filho do fidalgo, mata por acidente uma Aymoré, este povo indígena tenta
vingar-se matando Ceci, mas é impedido por Peri. A tensão cresce entre a
família portuguesa e o povo indígena. Peri arma então a estratégia de
envenenar-se para combater os Aymoré. Como essa etnia mantém o ritual de
canibalismo, devorando os valentes vencidos, ele será comido depois de morto e
assim exterminará também o inimigo.
A pedido de Ceci, Peri suspende seu sacrifício heroico. Ao
final do romance, Dom Antônio entrega Ceci a Peri para que ela seja salva. Mas
só entrega a filha se Peri converter-se ao cristianismo: “O índio caiu aos pés
do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. — Sê cristão! Dou-te
o meu nome. Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e
ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar
sua senhora”.
Peri e Ceci fogem então numa canoa e são surpreendidos por
uma tempestade. Depois, os dois somem no horizonte. José de Alencar termina sua
obra com a ideia de que o casal formará a identidade do novo Brasil.
“Horizonte”, a última palavra do romance, é ao mesmo tempo futuro e o país que
se descobre.
Este é o indígena que aparece no discurso do chanceler, ao
citar José de Alencar. Uma identidade nacional forjada por um “cavaleiro
português no corpo de um selvagem”, que luta contra um povo indígena diferente
do seu para salvar sua adorada senhora branca, filha do colonizador, e que se
converte ao cristianismopara
fundar com ela o futuro nos trópicos. Peri, o indígena, é o “bom selvagem” que
oferta seu corpo para ser assimilado pela civilização.
Ao criar esse herói romântico no século 19, supostamente
indígena, Alencar sofreu críticas por desprezar a realidade. Mas o escritor
deve ser compreendido no seu contexto. Que Araújo o faça no século 21, usando
José de Alencar e desprezando todos os debates culturais daquela e de outras
épocas, poderia ser apenas um ataque contra a inteligência. Mas o chanceler do
bolsonarismo também precisa ser entendido no contexto do governo que ele tenta
justificar não apenas como um governo, mas como uma “nova era”.
O bolsonarismo é um projeto de poder com diferentes forças
internas e possivelmente antagônicas, em alguns temas, como o futuro próximo
deve mostrar. Como todo projeto de poder, está em disputa. Em algum momento,
talvez o próprio Bolsonaro, que dá nome à ideologia em construção, seja apenas
um adereço — ou nem mesmo isso.
Há um tema, porém, em que os diversos grupos que formam o
capitalismo messiânico que governa o país parecem coincidir, guardando uma
eventual ressalva por parte de uma parcela dos militares, cuja posição ainda
não está totalmente clara. Este tema é o futuro dos indígenas. Ou, mais
especificamente, o futuro das terras indígenas.
A escolha deste indígena com atributos morais europeus,
representado pela alusão a José de Alencar, não é um acaso. Este indígena, que
na obra do escritor manteve apenas as características do corpo e a cor, vai ser
branqueado pela matriz europeia da loira Ceci dos olhos azuis para fundar o
Brasil pós-independência. É amor cortês, mas também é assimilação brutal. Sobre
Peri, a quem não conhecemos porque Alencar também não conhecia, nada sabemos.
Vale a pena lembrar a declaração do hoje
vice-presidente, Hamilton
Mourão. Ao justificar ter dito durante a campanha que o país herdou a
“indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos negros, o general resgatou sua
mestiçagem e a colocou a serviço do apagamento do racismo estrutural do Brasil:
“Em nenhum momento eu quis estigmatizar qualquer um dos grupos, até porque nós
somos um amálgama de raças. É só olharem para mim. Eu sou filho de amazonense,
minha vó é cabocla”.
O que o bolsonarismo anuncia entender por “mestiçagem” é
assimilação. É o que Bolsonaro afirmou de várias formas na campanha, com a
brutalidade habitual: “O índio é ser humano como nós”. Quem será que pensava
que o índio não era humano?
É importante seguir perguntando. O que é, neste contexto,
“ser humano como nós”, Bolso? O populista explica que o índio “quer ter o
direito de 'empreender' e 'evoluir', o índio quer poder vender e arrendar a sua
terra. Mas avisa: “Os índios não querem ser latifundiários”. No entender do
novo presidente, ser humano latifundiário o índio não quer ser.
Antes do bolsonarismo, a tática da direita era dizer que os
índios não eram mais índios. Era duvidar da “autenticidade”. Como se um
indígena usar celular o tornasse menos indígena. Ao deixarem de ser
considerados indígenas, os diferentes povos perderiam o direito à terra. Essa
tática ainda persiste. Mas a nova direita representada por Bolsonaro é mais
esperta. Ela não nega o indígena, e sim afirma uma suposta igualdade do
indígena ao branco. Não para que os indígenas mantenham seus direitos
constitucionais, mas para que os percam.
Mais tarde, logo após a eleição, Bolsonaro ainda afirmaria:
“E por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem
animais em zoológico? O índio é um ser humano igualzinho a nós e quer o que nós
queremos, e não pode se usar a situação do índio para demarcar essas enormidades
de terras que, no meu entender, poderão ser sim, de acordo com a própria ONU,
novos países no futuro”. Só para constar: a ONU nunca disse que as terras
indígenas serão países do futuro.
O que o discurso do “ser humano como nós” encobre? Pela
Constituição de 1988, as terras dos indígenas são de domínio da União. Aos
indígenas cabe o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais, mas elas seguem
sendo públicas. Uma das principais missões de Bolsonaro é justamente abrir
essas terras públicas para exploração e lucros privados.
Uma parcela significativa das terras indígenas está na
floresta amazônica. Fazem limite com grandes plantações de soja e criação de
boi. Têm sido pressionadas — e invadidas — para o cumprimento do
ciclo: desmatamento da floresta para comércio ilegal de madeira, colocação de
cabeças de boi para garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de
soja. Em algum momento do processo, legalização
do “grilo” pelo governo do momento, com anistia aos ladrões de terras
públicas — ou aos que compram as terras públicas roubadas pelos ladrões.
Ao tornar o indígena um ser humano que quer converter a
terra em mercadoria, o discurso ideológico tem como objetivo fazer com que soja
e boi possam avançar sobre a floresta hoje protegida. A quem isso vai
beneficiar? Não a mim e a você. Mas sim aos grandes criadores de gado e aos
grandes grupos plantadores de soja para exportação.
A mudança que os bolsonaristas — o que inclui o
agronegócio mais atrasado do país — querem na Constituição vai permitir
também a mineração. Não por cooperativas de garimpeiros, sempre criminalizados,
mas por grandes grupos transnacionais, apresentados como empreendedores. A quem
isso vai beneficiar? Não a mim e a você.
É fácil perceber que o melhor para o conjunto dos
brasileiros é manter a terra ocupada pelos indígenas como terra pública —
e a floresta em pé. Como mostrou pesquisa recente do DataFolha, a maioria já
entendeu isso: seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras
indígenas.
O objetivo do bolsonarismo com relação às terras quilombolas
é o mesmo: abri-las para a exploração por grupos privados. Era essa a ideia por
trás das ofensas do então candidato durante a campanha, que chegou a dizer que
os quilombolas não serviam “nem para procriar”. Descendentes de escravos
rebelados, os quilombolas têm o título das terras ocupadas pelos antepassados,
mas seu uso é coletivo.
Quando o indígena não tem nome próprio no discurso do
chanceler Ernesto Araújo é este o propósito. Ao aparecer assimilado no nome de
José de Alencar, o indígena já não é. Virou “ser humano igualzinho a nós”. E
suas terras ancestrais são mercadorias como as “nossas”. O chanceler de
Bolsonaro sabe muito bem a quem serve quando tenta forjar uma identidade
nacional para um Brasil que afirma ter renascido pelas mãos de seu chefe. Ele
não cita os indígenas, mas afirma enfaticamente em seu discurso que trabalhará
pelo agronegócio.
A floresta amazônica é estratégica para evitar que o aquecimento global supere
os 1,5 graus Celsius nos próximos anos. Isso não é opinião, é pesquisa
científica de alguns dos melhores cientistas do mundo, que trabalham há décadas
com a crise climática. Para que o aquecimento global não avance, a floresta
precisa ficar em pé. Como manter a floresta em pé se o bolsonarismo se
comprometeu a abrir as terras indígenas para exploração?
É preciso criar uma ideologia, como faz o bolsonarismo.
Nela, o indígena supostamente teria como aspiração maior da sua vida se tornar
branco “como nós” e passar a tratar a terra como mercadoria, ansioso por
arrendá-la aos grandes grupos exportadores de soja e carne ou às grandes
mineradoras transnacionais. É preciso também afirmar que mudança climática é um
complô marxista, como o chanceler de Bolsonaro já escreveu, para não encontrar
resistência ao entregar a Amazônia em nome do nacionalismo.
O chanceler criou um departamento específico para o
agronegócio no Itamaraty e extinguiu o departamento que cuidava do clima e de energias
renováveis. A mensagem é clara. O atual presidente do Brasil fez ainda
mais. Transferiu
a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Mulher,
Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, fundadora
de uma ONG acusada de incitar ódio contra os indígenas. Os evangélicos, grupo
que a ministra representa, têm todo o interesse em ampliar a presença da sua
religião entre os povos originários. A eles também interessa que o índio seja
“ser humano como nós”, o que neste caso significa ser evangélico
neopentecostal.
Bolsonaro, como garoto obediente ao agronegócio mais
truculento, aquele que se confunde com agrobanditismo, foi adiante: entregou a
responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas para o
Ministério da Agricultura, comandado pela pecuarista Tereza Cristina, conhecida
como “musa do veneno”, pelos serviços prestados como congressista às indústrias
transnacionais de agrotóxicos. Como comentou um jornalista estrangeiro: é o
mesmo que entregar o comando do banco de sangue aos vampiros.
O problema para o bolsonarismo se chama “realidade”, já que
o planeta não vai parar de aquecer por causa das mentiras de Bolsonaro e de seu
chanceler. Mas até isso ficar claro para seus seguidores, a destruição já
estará consumada e os grupos que compõem o bolsonarismo já terão multiplicado
seus lucros. Se
os lucros são de poucos, o prejuízo sobrará para todos. Para os mais pobres
e os mais frágeis, o sofrimento será maior e chegará primeiro. Já chegou. Basta
ler a imprensa séria para descobrir. Ou lembrar quem sofreu mais com a
última crise da
água em São Paulo.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
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