O “Deus de Trump” invocado por Ernesto Araújo não funcionou.
No 23 de fevereiro, suposto Dia D, Maduro escapou do “xeque-mate humanitário”,
provando que ainda mantém controle sobre a alta oficialidade. A estratégia
fracassada representou uma nítida derrota para o líder opositor Juan Guaidó,
mas também para Donald Trump e o presidente colombiano Iván Duque. O Brasil só
não amargou completa desmoralização porque, na hora H, Bolsonaro entregou o
comando ao vice, Hamilton Mourão, assinando uma demissão branca do chanceler
Araújo. Há lições a extrair do episódio.
A disputa de poder na Venezuela contrapõe o Executivo (isto
é, a ditadura do chavismo terminal) ao Parlamento (isto é, a maioria
oposicionista oriunda das derradeiras eleições livres no país). O Parlamento
conta com apoio internacional majoritário e o respaldo da maior parte do povo.
Contudo, o Executivo tem as armas, pois o regime equilibra-se sobre a aliança
entre o aparato político chavista e a cúpula militar. Nesse cenário, a queda de
Maduro depende de uma cisão entre os componentes da aliança cívico-militar que
o sustenta.
A ideia de uma intervenção militar liderada pelos EUA só
passa pelos desvarios conspiratórios de correntes extremistas com as quais o
neófito Araújo extravasa seus impulsos infantis. Trump não organiza retiradas
americanas da Síria e do Afeganistão para se envolver numa ação isolada na América
do Sul. Duque não reativará a guerra civil colombiana em nome da democracia na
Venezuela. Os militares brasileiros rejeitam a perspectiva de produzir uma
Síria na faixa de fronteira amazônica. O chefe do Itamaraty que clamou por um
corredor de invasão a partir de Roraima é evidência dos riscos que Bolsonaro
corre ao nomear acólitos do Bruxo da Virgínia a postos de responsabilidade.
No Dia D que não houve, os Estados Unidos, a Colômbia e o
Parlamento venezuelano tentaram emparedar os militares entre as alternativas de
usar munição real contra o povo ou romper com o Executivo. A encruzilhada,
porém, não se materializou. De um lado, superestimou-se a mobilização popular
na fronteira colombiana. De outro, subestimou-se a coesão das Forças Armadas,
que sofreram defecções apenas periféricas. A vitória pontual de Maduro não
altera a paisagem de fundo, que descortina um regime falido e fraturas
estruturais na aliança de poder. Mas exige a substituição das proclamações
triunfalistas por iniciativas realistas.
O Brasil perdeu o confortável papel de ator coadjuvante. Na
reunião doGrupo de Lima, o chanceler de facto Mourão reorientou a diplomacia
regional, afastando a sugestão de intervenção militar externa aventada por
Guaidó. A negação de uma estratégia desvairada não equivale, porém, à definição
de uma estratégia positiva. A ditadura venezuelana não cairá sob golpes
retóricos ou a multiplicação de sanções econômicas americanas. É preciso
remover as últimas esperanças da cúpula militar e, ao mesmo tempo, convencê-la de
que não sofrerá a vingança de um futuro governo democrático.
As chaves do enigma encontram-se na Rússia e na China. As
duas potências devem ser persuadidas a abandonar o esquife do regime chavista,
ajudando a negociar um pacto de transição com os chefes militares. Sem o pulmão
financeiro providenciado por elas, a ditadura seria asfixiada. E, com a
garantia delas, os comandos das Forças Armadas venezuelanas dariam crédito à
promessa de anistia formulada pelo Parlamento.
Não é missão impossível. Putin carece de meios para projetar
poder na América do Sul. O governo chinês não trocará suas relações com os
principais países sul-americanos pela proteção a um regime sem amanhã. Contudo,
para realizá-la, o “Deus de Trump” precisa sair de cena. Se pretende exercer
liderança na crise regional, Bolsonaro deve ter a coragem de apagar as luzes do
quarto das crianças. Afinal, já passa da meia-noite.
Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue:
História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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