Cinquenta e cinco anos passam depressa. A memória se vai,
mas ficam recordações. No dia 13 de março de 1964 eu estava no Rio de Janeiro,
na casa do meu pai. À noite fui à Central do Brasil pegar o trem de volta para
São Paulo. Meu pai, general reformado e ex-deputado federal, residia no
Arpoador, no mesmo prédio em que moravam minha avó e um tio. Lá também morava
Carlos Drummond de Andrade. Por Copacabana inteira, passando por Botafogo e
pelo Flamengo, havia velas acesas nas sacadas de muitos edifícios: a classe
média, especialmente a mais alta, protestava contra Jango Goulart, presidente
da República que convocara seus apoiadores a se reunirem naquela noite em
comício perto da Central do Brasil, em frente à Praça da República.
Tomei o trem, indiferente ao que acontecia. Por acaso,
estavam no trem vários amigos: o José Gregori, que viria a ser ministro da
Justiça em meu governo; Plínio de Arruda Sampaio, que fora meu colega de curso
primário no colégio Perdizes, em São Paulo, e se tornaria deputado federal
constituinte; e o engenheiro Marco Antônio Mastrobuono, futuro marido da filha
de Jânio Quadros. No jantar, conversas e discussões. O “golpe” estava no ar: de
quem seria? Não chegamos a concluir se dos militares e da “direita”, ou das
“forças populares”, com Jango à frente, em favor de vagas reformas. Só sabíamos
de uma coisa: viesse do lado que viesse, sofreríamos as consequências…
Na época eu era jovem professor-assistente da Faculdade de
Filosofia, tinha 33 anos e assento no Conselho Universitário da USP como
representante dos livres-docentes. Pouquíssimos sabiam de minhas relações de
família com a vida política. Meu pai se elegera deputado federal pelo PTB em
1954. No governo de Getúlio, um primo de meu pai havia sido governador do Rio e
outro, ministro da Guerra, o mesmo cargo ocupado por um tio-avô no início dos
anos 1930. No governo de Juscelino um tio havia presidido o Banco do Brasil.
Meu pai e muitos familiares pertenciam à ala nacionalista e
eram favoráveis à campanha “O petróleo é nosso”, na qual também me envolvi.
Nunca me esquecerei do vidrinho de petróleo baiano colocado numa estante na
casa do marechal Horta Barbosa, que eu frequentava quando menino, pois sua filha
se casara com um irmão de meu pai.
Eu me interessava sobretudo pela faculdade, na qual me
tornei professor em 1953, num ambiente avesso a Vargas e distante dos
militares.
Minha participação política até então havia sido fugaz: no
começo dos anos 1950 estive próximo da esquerda, do Partidão e do círculo
intelectual liderado por Caio Prado Júnior na Revista Brasiliense. Rompi com o
PC quando os soviéticos invadiram a Hungria, em 1956. Depois do Relatório
Kruchev, da mesma época, agitei bastante contra os dirigentes comunistas. Não
simpatizava com o populismo de Jango, embora fosse amigo de seu chefe da Casa
Civil, Darcy Ribeiro. Nada disso impediu que a partir de 1964 eu fosse
considerado “subversivo” pelos novos donos do poder.
No início dos anos 1960, lutava pela organização da carreira
universitária e pela Fapesp. No Conselho Universitário ajudei a derrotar a
“oligarquia”: com a ajuda de Hélio Bicudo e Plínio Sampaio, ambos do gabinete
do governador Carvalho Pinto, elegemos o professor Ulhôa Cintra reitor da USP.
Por isso eu gozava de prestígio em camadas de professores e, sobretudo, de
estudantes.
Recordo-me de duas reuniões na Faculdade de Filosofia na
noite de 1.º de abril de 1964. Numa tentava acalmar os estudantes, pois não
entendia bem o que acontecera e achava precipitado haver manifestações. Na
segunda tentava o mesmo com meus colegas professores. Tamanha era a confusão
que houve quem propusesse um manifesto contra os militares golpistas que
apoiavam Jango… Precisei telefonar para um colega, professor da Medicina,
pedindo que viesse em meu socorro, para evitar o protesto contra Jango, que
estava sendo deposto.
Em seguida a polícia tentou prender outro professor, Bento
Prado, confundindo-o comigo. Tive de me “esconder”, primeiro em casas de
amigos, em São Paulo, depois no Guarujá, num apartamento do Thomas Farkas, na
companhia de Leôncio Martins Rodrigues. De lá saí para ir a Viracopos, cercado
por familiares e amigos, sob a batuta de Maurício Segall, que se informava e
sabia dos aeroportos ainda sem listas de subversivos a serem capturados. Voei
para Buenos Aires, onde me hospedei no apartamento de um colega sociólogo, José
Num, que mais tarde foi ministro da Cultura de Néstor Kirchner. Da Argentina
fui para o Chile, carregando comigo os escritos da tese que pretendia defender
para conquistar uma cátedra que vagara com a saída de Fernando de Azevedo.
Ruth, minha mulher, ficou em São Paulo. Ela procurou, então,
o professor Honório Monteiro, que representava a Faculdade de Direito no
Conselho Universitário e era afilhado de sua avó. Eu me dava bem com ele, assim
como com meus vizinhos de cadeira no Conselho, representantes da Faculdade de
Direito, Luís Eulálio Vidigal e Gama e Silva (que fora ao jantar de comemoração
de meu doutorado. Mal sabia eu que, anos depois, ele assinaria o AI-5…). Quando
Ruth perguntou ao professor Honório: “O que vai acontecer?”, ele, sabiamente,
replicou: “Nada, vai mudar tudo”. Perdi a condição de professor, que só
retomaria em outubro de 1968 ao vencer o concurso para a cadeira de Ciência
Política. A cátedra durou poucos meses. Em 13 de dezembro, Gama e Silva, então
ministro da Justiça, leu o AI-5, que fechou o Congresso, suspendeu o habeas
corpus, cassou mandatos, e, como vários professores universitários, fui
compulsoriamente aposentado em abril de 1969.
A institucionalidade foi quebrada e minha vida mudou.
Recordar faz parte da História. Celebrar, o quê? No meu caso, exílio, processos
e perda de cátedra. Rancor? Para quê? Olhar para a frente e manter a democracia
é o que conta.
*Sociólogo, ex-senador, ex-presidente da República
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