Quem foi para a rua, mesmo para criticar as instituições
democráticas, tinha o direito de estar lá. Na democracia, essa liberdade é
consagrada. A questão a discutir não é o ato em si, mas toda a ambiguidade que
está presente em alguns atos e palavras das autoridades. O presidente Jair
Bolsonaro que considerou legítimas as manifestações de domingo chamou de
“idiotas” os que fizeram os protestos do dia 15. São dois pesos, duas medidas.
Ele não foi, mas deu um mote enviesado quando divulgou, dias antes, texto em
que sugere que está sendo impedido de governar, e ontem ao falar que o
movimento fora “um recado contra aqueles que teimam nas velhas práticas”.
Bolsonaro deixa subentendidos demais quando fala sobre a
relação com o Congresso. Dá a entender que seus problemas são derivados de os
políticos o estarem pressionando para usar a moeda da corrupção nas negociações
para formar uma coalizão. E essa mensagem esteve presente nos atos de domingo,
personificada no ataque direto ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia.
Já as críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) estiveram
presentes até na boca de parlamentares do partido. O deputado estadual Filippe
Poubel (PSL-RJ) repetiu a frase do terceiro filho do presidente, deputado
Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo só precisa de um soldado e um cabo.”
O senador Major Olímpio (PSL-SP) ameaçou: “Nos aguarde STF.”
Isso não quer dizer que a maioria dos que foram às ruas
tinha esse objetivo, mas o fato de ser dito em alto e bom som por parlamentares
do partido do presidente não pode ser subestimado. A democracia aceita
protestos contra as instituições que a sustentam, mas essas falas, entre tantas
outras, mostraram que o governo Bolsonaro flerta frequentemente com a ameaça à
democracia.
O país está diante de uma situação difícil. A economia não
deslancha, a confiança dos empresários e operadores de mercado está em queda
livre, as contas públicas estão com forte déficit. Além disso, é necessário
passar pelo Congresso matérias complexas, como a reforma da Previdência, o
crédito suplementar de R$ 248 bilhões, a mudança na lei de teto de gastos para
permitir o acordo com a Petrobras e a distribuição dos recursos. Se não tiver
um bom diálogo com o Parlamento, o Executivo pode enfrentar derrotas e
alterações indesejáveis nos projetos.
A manifestação não foi tão grande que tivesse dado a
Bolsonaro o capital político extra com o qual ele sonhava. Mas foi relevante. E
poderia até fortalecer as reformas, se Bolsonaro demonstrasse empenho em
construir uma maioria para aprová-las. Ele estimulou a ida às ruas para dar uma
resposta aos protestos contra os cortes na educação. Não foi por entusiasmo com
a mudança da Previdência. Como ele já disse várias vezes, se pudesse, não faria
a reforma.
O grande problema tem sido a dificuldade de o presidente
Bolsonaro entender que quem é eleito governa, quem não tem maioria tem que
negociá-las, quem comanda o Executivo precisa defender seu projeto diariamente.
Que as redes sociais sempre serão uma forma subsidiária de comunicação e que o
tempo de suas declarações irresponsáveis — quando era apenas um parlamentar de
desempenho pífio — encerrou-se quando foi escolhido para liderar o país nas
últimas eleições.
Nas manifestações de domingo havia pessoas defendendo suas
convicções. Excelente. Foi para isso que o país lutou contra o período
ditatorial que por tanto tempo reprimia, muitas vezes com violência, qualquer
passeata, e que editou um Ato Institucional que proibia reuniões políticas. A
democracia aceita até que se manifestem os saudosistas do tempo em que a
liberdade foi cerceada. Mas cabe às lideranças do país tomarem precauções para
não incentivar um tipo de ataque às instituições como algumas que foram vistas
nas ruas de domingo. Pedir o fechamento do Supremo, demonizar qualquer negociação
política como sendo pressão pela “volta das velhas práticas”, afirmar, como fez
Bolsonaro, que é preciso “libertar” o país é atravessar uma linha que não deve
ser transposta numa República que teve duas ditaduras nos últimos 90 anos. Que
as ruas falem sempre o que quiserem, mas que os governantes tenham a lucidez de
não ecoarem os extremos.
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