Com impetuosidade, dom Sebastião levou tropas portuguesas
sob seu comando a lutar contra os marroquinos, na batalha de Alcácer-Quibir, em
1578, na qual grande parte da elite de Portugal morreu e o rei desapareceu. Com
o vazio em sua sucessão ao trono português, impôs-se o domínio espanhol. Logo
surgiu o imaginário de que dom Sebastião estava vivo, “encoberto”, e apareceria
para salvar a nação, livrando-a do despotismo castelhano.
O Brasil viveu ao longo do tempo fenômenos similares
circunscritos, mas referenciados, ao mito de dom Sebastião. Como dizem Edna da
Silva Polese e Sérgio Fernandes de Lima, o sebastianismo atravessou fronteiras
temporais e espaciais com o surgimento, em momentos de infelicidade e de
perdas, da crença no aparecimento de um salvador, um restaurador da ordem e da
justiça (Revista Letras v. 16, n.º 19;https://periodicos.utfpr.edu.br/rl e
http://daofilho.blogspot.com/p/o-sebastianismo-no-romance-pedra-bonita.html).
José Lins do Rego e Ariano Suassuna bem contam nos romances
Pedra Bonita e A Pedra do Reino o episódio ocorrido em Pernambuco em 1838, na
Serra Formosa, ao lado de formação rochosa. João Antônio dos Santos e depois
seu sucessor, João Ferreira, alardeavam que dom Sebastião, incrustado na pedra,
voltaria para trazer a bem-aventurança. Para tanto a pedra deveria ser banhada
de sangue, promovendo-se grande massacre.
Igualmente no início da República Antônio Conselheiro, beato
que se instalara em Canudos, na Bahia, proclamava a volta de dom Sebastião.
Este retornaria dos mortos para restaurar a monarquia no Brasil e transformar
males em bem, o sofrimento em alegria, o injusto no justo, numa visão
imaginária delirante, bem retratada por Euclides da Cunha ao lembrar trova de Canudos:
“Garantidos pela lei Aquelles malvados estão, Nós temos a lei de Deus, Elles
tem a lei de cão”.
O mito do sebastianismo ilude a vinda de figura heroica que
se sacrifica, com risco da própria vida, para promover uma nova era, um modo
purificador de realizar as coisas com justiça em rumo ao paraíso.
Collor já indicava a adesão à figura de um “cavaleiro do
bem”, o caçador de marajás que instalaria o reino da correção em face da
corrupção do governo Sarney. Mas não tardou a surgirem as denúncias de sua corrupção.
E desde 2005 revelaram-se o aparelhamento do Estado e a disseminação da
corrupção em favor de políticos dos principais partidos, que irresponsavelmente
levaram ao desemprego e à recessão.
Larga desconfiança do sistema político se instalou no espírito
de parcelas consideráveis da população. Em 2016, o impeachment necessário para
estourar o tumor que gangrenava a Nação trouxe um presidente impopular, logo
acusado de corrupção, não afastado do cargo graças à cooptação do Congresso.
Bem fervido o caldo de cultura propício ao surgimento
ilusório de um salvador, que instalaria um novo modo de ser, uma figura
messiânica que – sem o carisma de Jânio, Ademar, Getúlio – iria galvanizar o
povo por trazer uma boa-nova, valendo-se de poucas palavras em modo inusitado
de comunicação: as redes sociais. Candidato dos indignados contra o desmando
dos governantes, Bolsonaro aparece no imaginário popular como redentor.
Sem carisma, Bolsonaro, vítima de facada da qual se salva
“por obra divina”, apresentou-se como quem governaria sem as intermediações
próprias do regime representativo, impondo sua vontade por força da pressão
popular que arregimenta pelas redes sociais. Nada disse de concreto: apenas
prometeu a redenção e nova forma de exercício da “democracia”, sem diálogo com
o Parlamento, a ser demonizado se não o apoiasse. Inimigos, “traíras”, seriam e
são todos os que neguem sustentação absoluta àquele que aí está para –
alegadamente – salvar o País e promover a justiça e o bem.
É proclamado mito e exerce influência no imaginário popular
de modo irracional, comovendo parcela da população que acredita ser ele o
portador de fartura e honestidade. O que dele provier se presume estar certo: o
espírito crítico não tem lugar em face do mito.
No último domingo viu-se exatamente isto: não existem erros
do governo, que bate cabeça desde janeiro. Para os que acorreram às ruas, o
mito está sempre correto. O governo tosco tem uma pauta moralista e
armamentista para dar sensação de prover a segurança. O chamado projeto
anticrime de anticrime só o nome tem, pois, seguramente, dali não decorrerá
nenhuma prevenção ou redução da criminalidade. Mas o que importa é a idolatria
do “submito”, Moro.
Estamos diante de um novo surto sebastianista, com mistura
de religião e política. Essa vertente político-religiosa vem expressa na
atitude e em cartazes deste domingo: populares gritavam “mito, mito, mito, meu
capitão!” e faixas estampavam: “Congressistas deixem o mito trabalhar”.
Manifestantes iniciaram o ato em Brasília rezando um Pai-Nosso, com a oradora
pedindo a Deus para “ajudar o presidente a dizer não a esse tal Centrão e a
dizer não ao STF” e terminando com a frase: “Viva Jair Messias Bolsonaro!”.
Outro orador alertava: “Estamos travando uma guerra espiritual”. Mas assegurava:
“Deus está do nosso lado”. Com o monopólio do certo, dizem: “Tem de o Congresso
aceitar. Não existe essa de o Congresso fazer as pautas do Executivo”. Faixas
tratam os representantes dos outros Poderes como traidores da Pátria, por
dificultarem a “tarefa salvadora” do presidente.
Em culto pela manhã, Bolsonaro interpretou as passeatas como
um recado aos que “teimam, com velhas práticas, em não deixar que esse povo se
liberte”. Como em Canudos, podem o presidente e seus asseclas entoar: “Nós
temos a lei de Deus, eles têm a lei de cão”.
Bolsonaro se faz mais Messias do que Jair, a gerar nos
espíritos abertos ao debate, e à força da persuasão, o receio imenso de um
futuro de uma só verdade, cuja contestação vira traição.
* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior
da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi
ministro da Justiça
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