O grande desafio
político consistiu, a partir do último quartel do século 20, na superação das
fragilidades da democracia representativa numa sociedade de massas inertes e
manipuláveis, na qual a relação entre a sociedade civil e a política fica
limitada ao processo eleitoral.
A crise da
democracia representativa cresceu vertiginosamente com o compartilhamento em
rede: pessoas que se juntam em torno de preconceitos e subjetividades, um rol
imenso de desconhecidos que retroalimentam suas idiossincrasias, seus ressentimentos
e crenças inabaláveis.
Mas há outro lado, o
das forças atuantes da sociedade civil. Profissionais e voluntários vêm a
constituir polos de produção de opiniões e sugestões, fruto da experiência e do
estudo. São muitas manifestações (espontâneas ou programadas) por associações,
órgãos de classe, organizações não governamentais, voltadas para influir no
processo decisório, trazendo valiosa contribuição, própria de um consistente
pluralismo social.
Reconhecendo-se a
valia desse pluralismo, criaram-se ao longo do tempo muitos órgãos de cunho
consultivo para assessorar a administração pública. Houve, sem dúvida,
exageros, com focos de mera reivindicação leviana ou assembleísmo; certo é,
porém, que a participação da sociedade oxigena, instrui e amplia a ação
estatal, em suma, democratiza.
De fato, para a
legitimidade da democracia de massas num mundo em rede é essencial a atuação e
a presença efetiva da sociedade, fazendo mais pessoas participarem,
racionalmente, da criação do destino coletivo.
Pois Bolsonaro fez
exatamente o contrário no primeiro dia de governo, afirmando que governaria em
ligação direta com o povo, sem nem mesmo partidos políticos, num neopopulismo
virtual. Ilegalmente decretou o fim dos conselhos. Semana passada, suprimiu a
participação de médicos no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
Fui, em 1988,
presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), antecessor do Conad,
então órgão do Ministério da Justiça, com um quadro de médicos estupendo:
Elisaldo Carlini, autoridade mundial em pesquisas de drogas, lente emérito da
Unifesp; Miguel Roberto Jorge, professor associado de Psiquiatria da Unifesp,
foi eleito presidente da Associação Médica Mundial; Sérgio de Paula Ramos,
presidente da Associação Brasileira de Álcool e outras Drogas (Abead). Essa
valiosa participação permitiu trabalho inovador na área de prevenção, em
convênio com a ONU.
O desprezo de
Bolsonaro pela inteligência manifesta-se no ataque ao Inpe, acusado de “estar a
serviço de alguma ONG”, sendo seu presidente Ricardo Galvão, professor titular
da USP, merecedor de prêmio do Centro Internacional de Física Teórica de
Trieste, na Itália. A desfeita ao Inpe coincide com a outorga pela Organização
Meteorológica Mundial (WMO), das Nações Unidas, de seu mais importante prêmio
ao instituto, na pessoa do cientista Divino Moura.
Em sua trajetória de
exterminador cultural, Bolsonaro entende ser de sua competência definir
roteiros a serem patrocinados pela Ancine, no mesmo instante em que o cinema
brasileiro, com as fitas Bacurau e Vida Invisível de Eurídice Gusmão, ganhou
prêmios no Festival de Cannes.
Sob a orientação do
ministro da Economia, Bolsonaro propôs emenda constitucional visando, na
prática, à eliminação dos órgãos de classe: “artigo 174 – A lei não
estabelecerá limites ao exercício de atividades profissional ou obrigação de
inscrição em conselho profissional sem que a ausência de regulação caracterize
risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social”.
Assim, para advogar
não será mais necessário estar inscrito na OAB e esta, se perdurar, não poderá
exigir dos milhares de bacharéis que se formam a cada ano prova mínima de
suficiência para o exercício da profissão. Os profissionais em geral não
estarão sujeitos a regras uniformes de ética, seja o médico, o economista, o
contador. Com isto se banalizam as profissões, das quais se retira a
respeitabilidade, num desfazimento do tecido de credibilidade da parcela
pensante e crítica de nossa sociedade.
Seria anacronismo
fazer paralelo entre Nero, imperador romano entre 54 e 68 de nossa era, e o
Bolsonaro de hoje, mesmo porque Nero mostrou virtudes no início seu reinado
graças a Sêneca, seu sábio preceptor, para quem cabia viver em harmonia com a
natureza, com retidão compassada pela razão à espera serena da morte.
Mas há três dados
que em Bolsonaro lembram a figura de Nero: o fascínio pela popularidade, com
desprezo pelas classes médias e pelo Senado; o intenso envolvimento nas
intrigas familiares; e o possível incêndio de Roma para refazê-la a seu feitio.
Discutem os
cronistas se efetivamente Nero teria mandado pôr fogo em Roma (Croiselle, Néro
n a-t-il Brulê Rome?, Histoire, n.º 234 – jul/agosto de 1999, pág. 26).
Suetônio e Plínio, o Velho, afirmavam categoricamente, porém outros, como
Tácito, tinham dúvidas. Todavia passou para a História ter Nero, alucinado,
incendiado Roma.
Entre Nero e
Bolsonaro remanesce a coincidência do vezo autoritário no exercício do poder
com a volúpia por popularidade, que se casa com o desejo de reconstruir Roma a
seu modo. Hoje Bolsonaro atua para tornar terra arrasada a democracia
participativa, essencial ao nosso mundo plural, pretendendo impor modos de ser
em face de múltiplos aspectos da vida como direito fruto da eleição. Incentiva
antagonismos com o passado para perenizar o confronto e ditar comportamentos,
com descaso pelo que não coincida com sua rasa compreensão e baixa
sensibilidade, como a revelada ao falar sobre o desaparecido político pai do
presidente da OAB.
Estabelece-se o
fascismo cultural, por via do qual é proibido pensar, mas permitido obedecer.
Estamos, talvez, diante de um simplório plano de dominação, para o qual se deve
estar bastante alerta.
*Advogado, professor
titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de
Letras, foi ministro da Justiça
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