A perversão verbal do mandatário Bolsonaro atingiu nos
últimos dias decibéis intoleráveis, gerou uma repulsa quase generalizada a sua
figura e expôs de uma vez por todas a truculência e rudeza da personalidade que
ele carrega. Foram disparates em série. Cruéis, insensíveis, desumanos. Além de
atentar contra a memória dos familiares de um morto pela ditadura, o pai do
presidente da OAB, Felipe Santa Cruz – e, por tabela, ofender todos aqueles
martirizados pelo regime de exceção que nos idos de 60/70/80 ceifou a vida de
inúmeros brasileiros -, ele também afrontou índios e vítimas do brutal massacre
numa cadeia do Pará. Dias antes, atacou jornalistas, membros do próprio
governo, instituições federais como Ancine e INPE, meros servidores. Bolsonaro
vem ultrapassando todos os limites, mesmo os seus, costumeiramente rasos.
Confrontado com fatos e evidências, tripudiou. Classificou de “balela” os
documentos oficiais do próprio Estado onde se assumia a responsabilidade pelo
desaparecimento do dissidente político depois de sua prisão.
Pelas insinuações e versão, o presidente pode vir a ser
considerado cúmplice em conhecimento de causa e terá de responder nos
tribunais, caso não esclareça o que quis dizer na condição de chefe de Estado.
A OAB entende que ele incorreu numa lista de crimes e vai interpelá-lo
judicialmente, inclusive por desmerecer o trabalho da Comissão Nacional da
Verdade. A organização internacional Human Rights Watch classificou de
irresponsáveis e cruéis as declarações e o ministro do Supremo Marco Aurélio
Mello chegou a sugerir que se passe uma mordaça no presidente para evitar seus
impropérios. Bolsonaro se converteu em um mitômano. Dado a devaneios em suas
“lives”, enquanto corta o cabelo ou em coletivas de improviso, não apenas
distorce eventos e circunstâncias para estabelecer uma realidade paralela,
adequada a seus interesses, como nega descaradamente e com a maior candura do
mundo fatos de domínio público. Um presidente com esse pendor tende a levar o
País a caminhos sombrios e imprevisíveis.
Mesmo auxiliares e interlocutores mais próximos estão
atônitos com tamanho destempero. Os flertes autoritários sempre o acompanharam
na trajetória de deputado do baixo clero, quando ele saudava torturadores e
práticas da repressão – chegou a reclamar quando a Justiça Federal determinou a
busca por restos mortais no Araguaia, alegando que “quem procura osso é cachorro”,
e fez pouco caso do notório assassinato de Vladimir Herzog nos porões do
DOI-Codi, dizendo que “suicídio acontece” -, mas agora tais disparates assumem
dimensões assustadoras e inaceitáveis para um chefe de Estado. Todos esperavam
que ele moderasse o tom. Lembrasse que no seu novo papel lhe cabe a missão de
pacificador das vozes, em busca de uma conciliação nacional, e não a de indutor
do ódio e da selvageria. Mas Bolsonaro não tem o menor traquejo ou noção de
como se portam os estadistas. Fica evidente, dia a dia, a falta de vocação para
o posto e tal ignorância não é apenas sobre os assuntos a resolver como no
trato propriamente dito.
Messias parece não compreender procedimentos elementares,
como o de prestar obediência à Constituição, sob a qual jurou governar. Quase
que diariamente, com o comportamento tresloucado e sem filtro, vem quebrando o
decoro e a liturgia do cargo, na fronteira das práticas de crimes de
responsabilidade. O que pode arrancá-lo do Planalto. Na Carta Magna está
previsto em um dos artigos que caso o mandatário proceda “de modo incompatível
com a dignidade, a honra e o decoro” estará sujeito ao processo de impeachment.
O histrionismo dos últimos tempos já afastou dele
tradicionais aliados, deve prejudicar o andamento de projetos no Legislativo e
pode ainda, por deveras humilhante, lhe impor sanções através do Supremo
Tribunal Federal que em breve irá julgar a petição da OAB e terá de se
pronunciar a respeito. Será uma forma legal de lhe mostrar as fronteiras do
certo e do moralmente aceitável que ele não pode transgredir, sob pena de uma
retirada prematura. A palavra de um presidente, por exemplo, tem de estar
sustentada pelo manto da verdade factual. Fundamento elementar. Injúrias e
infâmias não cabem nesse figurino.
No plano do comportamento, a profusão de equívocos e desvios
do capitão reformado, repetindo costumes de antecessores, também não é menor.
Como se estivesse fazendo o papel de bom provedor do lar, o presidente chegou a
justificar o uso de aeronaves oficiais por seus familiares, que foram ao
casamento do rebento Eduardo a bordo de helicópteros da FAB. Indignado com as
cobranças, reagiu: “vou fazer o quê? Mandar de carro?”. Não, prezado
mandatário, se for de seu desejo, e com as suas posses, o senhor paga a
passagem aérea deles.
Não deixa a conta para o contribuinte que não tem nada a ver
com o pato. Costumeiramente é esse o grande erro dos que são por aqui
escolhidos para o poder. Chegam lá, se aboletam como se estivessem na própria
casa, adotam medidas e acertos paralelos de acordo com as vontades pessoais – a
do eleitor jamais é levada em conta – e pior: usufruem à vontade dos bens do
Estado como se fossem de sua propriedade privada. Tais hábitos estão no
quadrante das infâmias de outra natureza. O ex-governador preso Sergio Cabral
fazia direto, com entourage de serviçais, cachorro e quetais, e Bolsonaro
achava ruim. Agora crer ser natural. Com certeza alguns governadores, juízes e
parlamentares compartilham da mesma opinião. São, afinal, beneficiários diretos
da mamata às expensas do contribuinte.
Bolsonaro também parece querer se locupletar, e a seus
familiares, por meio de outros expedientes. Está determinado a colocar o filho
na embaixada de Washington, em um nepotismo escancarado, porque deseja dar a
ele, como disse, o “filé” e não “carne de osso”. Alastra a sua benevolência aos
convivas e concede férias antecipadas a pelo menos cinco ministros, com apenas
seis meses de governo, que deveriam estar submetidos às regras convencionais e
aos anseios de seus reais patrões: os contribuintes que bancam o Estado. Mas
Bolsonaro não pensa assim. Para o Messias ele quem manda, talquei? Chatos são
os que lhe cobram disciplina republicana. O mandatário dá de ombros, tá se
lixando. Foi eleito e é o que basta – como reitera costumeiramente. Flávio, o
filho número três, se envolve em um laranjal para ganhar “mensalinho” e papai
barra as investigações.
Cheques no nome dele, empréstimos inclusive para a primeira
dama e acertos com um intermediador que foge da justiça são possíveis porque
sob a guarida do capitão vale tudo. Bolsonaro está agora determinado a colocar
alguém “terrivelmente evangélico” – não importando se é “terrivelmente”
competente – no STF. Tem a ver com as suas preferências religiosas. E o povo
com isso? E os católicos, os umbandistas, espíritas, muçulmanos, judeus e
demais serão representados como na Suprema Corte? O Estado é laico, reza a
Constituição. Mas para Bolsonaro não importa. Mero detalhe. Ele confunde a
cadeira do Planalto com o quintal da casa da Mãe Joana.
Não vai dar dinheiro público para “fins pornográficos”, como
classifica parte da produção cinematográfica brasileira, e ponto. Implode com a
Educação e a Cultura porque considera professores “comunistas”. Comete heresias
sociais e fica tudo como está. Não é nada razoável que um presidente se
comporte como um senhor feudal, capaz de esquisitices, hostilidades e infâmias
a rodo que afetam o direito e o interesse de seus governados. Um presidente
intolerante impondo uma doutrinação que flerta com o fascismo é a maior das
infâmias. E essa precisa ter fim.
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