Jair Bolsonaro (PSL)
segue a cartilha de Donald Trump e aposta
na escalada da violência retórica dirigida contra quem considera ser
seu adversário. Mas não só isso. Nas últimas semanas de recesso do Congresso
Nacional e do Supremo
Tribunal Federal, o presidente da República também aproveitou para
desautorizar e interferir diretamente em instituições de Estado. Entre os alvos
mais recentes está a Comissão
sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP)da ditadura militar, cujo colegiado foi
substituído na última quinta-feira por bolsonaristas do PSL que defendem o
regime autoritário. A mudança ocorreu na mesma semana em que o presidente
atacou diretamente o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe
Santa Cruz. Seu pai, Fernando Santa Cruz, foi preso pela ditadura militar em
1974 e desapareceu. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o
pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer
ouvir a verdade”, afirmou o mandatário na última segunda-feira, provocando
crises tanto de lideranças políticas da esquerda como da direita. Ele
desautorizou publicamente o relatório da Comissão Nacional da Verdade e
erroneamente garantiu que ele havia sido morto pelo grupo Ação Popular, do qual
sequer fazia parte.
O jurista Miguel Reale Júnior, ministro da Justiça no
Governo Fernando Henrique Cardoso, presidente da CEMDP durante seis anos e um
dos autores do pedido de impeachment
contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), acredita que Bolsonaro “está
beirando” ao menos uma das hipóteses legais para a abertura de outro processo
de destituição do presidente. A
lei, considerada por especialistas muito
abrangente e de interpretação subjetiva, determina que “proceder de modo
incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” é um dos crimes de
responsabilidade pelos quais um presidente pode ser afastado. “O que está
havendo é uma somatória de fatos dessa natureza que atingem a sensibilidade das
pessoas e os valores fundamentais da Constituição. A partir do momento que ele
é a favor do trabalho infantil, quer reduzir a punição para o trabalho escravo
ou os presos tenham trabalho forçado, Bolsonaro vai contra os valores
fundamentais da República. Isso é quebra o decoro”, opina Reale Júnior.
Ao mesmo tempo que acredita que a base jurídica para um
impeachment virá com a somatória de “provocações e ofensas”, o advogado,
filiado ao PSDB até 2017, afirma que falta um elemento central para que um
processo vá adiante: “Ainda não há condições politicas seja na sociedade, seja
no Congresso. Ele precisa se desgastar mais. Isso pode ocorrer na medida que
houver um acúmulo”. Mas ele se mostra cético: “Acho que as instituições e a
sociedade estão muito caladas. As manifestações acontece nas redes, onde não
existe sociedade civil. O que existe são desconhecidos e anônimos que colocam
suas idiocrasias. A sociedade precisa estar alerta para se unir e se juntar
contra esse processo que eu chamo de fascismo cultural”.
O advogado Pedro Dallari, professor de Direito Internacional
da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), se mostra mais otimista. Apesar de dizer que é
“um paradoxo” o fato de que “uma democracia em consolidação ter um presidente
que nega suas conquistas”, ele diz não ter receios “do ponto de vista da
cidadania e das liberdades”. Isso porque, para ele, Bolsonaro se equivoca ao considerar
que sua base de eleitores congrega valores de ultradireita. “Um conjunto de
circunstâncias fez com que Bolsonaro acabasse capitalizando uma posição da
sociedade contra a corrupção, contra o desemprego, contra a precariedade dos
serviços públicos, principalmente de segurança, e isso fulminou as candidaturas
do campo social-democrata, incluindo as do PT e PSDB”, argumenta Dallari, que
foi filiado ao PT até meados dos anos 90. “Mas acho que ele vem perdendo
progressivamente o apoio de segmentos, inclusive da classe média conservadora
que dá importância para temas como meio ambiente ou direitos da população
LGBT”, acrescenta.
A última pesquisa Datafolha, divulgada na sexta-feira, 2 de
agosto, parece dar respaldo a afirmação do jurista: 86% dos entrevistados se disseram contra a garimpagem de terras
indígenas, algo que Bolsonaro vem prometendo legalizar. Uma maioria
expressiva, de mais de 70%, já havia se manifestado também contra a liberação
do porte de armas. “Do ponto de vista dos direitos civis, acho que a
resistência social e institucional, seja pelo Legislativo ou pelo Judiciário,
vem sendo efetiva. Essa radicalização retórica talvez seja em razão disso”,
argumenta. Ele cita como exemplo a queda do decreto presidencial que liberava o
porte de armas para vários setores da sociedade. “Não recordo de um decreto ser
derrubado dessa forma no Congresso, obrigando-o a recuar”, argumenta.
Há momentos em que Bolsonaro parece testar as instituições
até o limite. O presidente havia editado em janeiro uma Medida Provisória (MP)
que transferia para o Ministério da Agricultura a competência para demarcar terras
indígenas e quilombolas. Em maio, o Congresso Nacional devolveu a competência
para o Ministério da Justiça, que também voltou a abrigar a Fundação
Nacional do Índio (Funai). Em 19 de junho, o presidente decidiu enfrentar a
decisão do Legislativo e editou uma nova MP para reverter a ação, avisando que
“quem manda sou eu”. No dia 24, o ministro do Supremo Tribunal Federal
Luís Roberto Barroso concedeu liminar suspendendo a MP. Na última quinta, o
caso foi para o plenário do Supremo, que decidiu por unanimidade manter a
medida suspensa. Em seu discurso, o decano Celso de Mello afirmou que a Corte
deveria fazer o seu papel de contrapeso, em claro recado ao chefe do Poder Executivo.
Após a decisão do STF, o mandatário recuou: disse ter sido uma “falha” de seu Governo, e dele
pessoalmente, a reedição de uma segunda medida provisória insistindo em deixar
a Funai sob os comandos dos ruralistas. “Teve uma falha nossa. Eu já adverti a
minha assessoria. A gente não poderia no mesmo ano ter que fazer uma MP de uma
ação já decidida. Houve falha nossa. A falha é minha né. É minha porque eu
assinei. Considero a decisão (do STF) acertada, sem problema nenhum”, afirmou
Bolsonaro, na sexta.
“O STF tem tido um ativismo judicial, às vezes positivo, às
vezes negativo, que muitas vezes transborda os limites da ação judicial,
criando normas e soluções. Mas neste momento o Supremo deve ter um papel muito
importante de poder moderador”, afirma Reale Júnior, concorda com Dallari sobre
o apoio relativo que Bolsonaro ainda possui em sua base.
Além do impeachment, Reale Júnior aponta como possibilidade
que o presidente seja denunciado por um crime comum, como pelo delito de abuso
de autoridade. Algo evidente, segundo o jurista, quando Bolsonaro ameaçou o
jornalista Glenn Greewald de ser preso, também na última semana. Neste caso,
caberia ao Supremo aceitar a denúncia e pedir autorização para a Câmara dos
Deputados para seguir com o julgamento. “Ele estaria sendo processado como
Temer foi e responderia por crimes praticados no exercício da Presidência.
Porque não é um ato que ele faz como Pessoa Física, mas na condição de
Presidente da República”, acrescenta.
Outro alvo recente da ira de Bolsonaro foi o Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Seu diretor, Ricardo Galvão, foi
exonerado na última sexta-feira após uma série de desentendimentos públicos com
o presidente. O Governo vem questionando os dados sobre o cada vez maior
desmatamento da Amazônia e anunciou
que contratará uma firma privada para fazer a medição. Outros membros do
Governo, como o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e o general Augusto
Heleno, também vem expressando suas discordâncias com a divulgação de dados de
desmatamento que consideram desfavoráveis para a imagem do Brasil ou até falso.
O risco é que o desmatamento se torne para o bolsonarismo o que a inflação,
maquiada durante anos na Argentina, se tornou para o kirchnerismo. “Meu único
receio é com a área ambiental, porque gera padrões irreversíveis. A acentuação
do desmatamento como vem sendo feita, o descaso com medidas contra o
aquecimento global, a destruição da malha normativa de proteção dos índios… São
males que serão irreversíveis”, afirma Dallari.
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