Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo
Consta que o documentário russo-soviético O Fascismo de Todos os Dias, de Mikhail Romm, lançado em 1965, foi visto por mais de 40 milhões de espectadores. Se a plateia foi mesmo tão grande, é merecido. Montado a partir de imagens cinematográficas originais da propaganda nazista, o filme reconstitui a formação do que chama “fascismo alemão” e consegue um resultado tão esclarecedor quanto apavorante.
Preliminarmente, cabe aqui um reparo sobre o título da obra. Classificar como “fascismo” a tirania liderada por Adolf Hitler talvez não prime pela melhor precisão histórica. O horror promovido pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães não foi a mesma coisa que a autocracia de Mussolini. Muitos estudos – os de Hannah Arendt entre eles – já detectaram distinções estruturais entre nazismo e fascismo. O primeiro implementou o genocídio como procedimento administrativo do Estado; o segundo, não. No primeiro, o Estado de vigilância total era empregado para eliminar desafetos na cúpula do regime; no segundo, o Estado policial estacionou em estágios mais rudimentares. O primeiro foi a encarnação paradigmática do totalitarismo, interpelando cada cidadão como um agente de segurança a serviço do Terceiro Reich; o segundo realizou-se como exacerbação do autoritarismo.
Entretanto, a despeito das dessemelhanças, os dois modelos guardam em comum traços essenciais. Tanto no nazismo como no fascismo, pulsam as tradições regressivas do cesarismo e do bonapartismo, com forte ojeriza aos marcos civilizatórios do Ocidente e virulenta negação das liberdades e dos direitos humanos. Principalmente, nos dois as massas inflamadas se encarregam de oprimir os dissidentes.
Nessa perspectiva, o título que Mikhail Romm deu ao seu documentário tem pertinência. “O fascismo de todos os dias” significa algo como “o fascismo dos comuns”, “o fascismo ordinário” ou “o fascismo cotidiano”. O foco do cineasta – que atua também como narrador, sempre em off – está na conversão das massas em promotoras ativas dos ideários obscurantistas que seus ditadores adorados procuraram transformar em lei fundamental da humanidade. Vistos por essa lente, nazismo e fascismo são irmãos, análogos, equivalentes. Portanto, Romm pode ter razão.
O documentário, em preto e branco, é dividido em capítulos. Na abertura do Capítulo V, lemos, como epígrafe, uma frase atribuída a Adolf Hitler: “Qualquer cabo pode virar professor, mas não é qualquer professor que pode virar cabo”. Na sequência, as imagens estarrecem. São cenas noturnas, filmadas pela máquina de propaganda do Führer. Num descampado ao ar livre, algo como um pátio gigantesco ou um estádio infinito, jovens perfilados em colunas militares, fardados, carregam tochas acesas. A coreografia em meio à treva faz as chamas desenharem rios de fogo, como lava escorrendo. Ao fundo, o diretor-narrador apresenta sua leitura do que se passa na tela.
“Durante três dias após a chegada de Hitler ao poder, aconteceram estas Marchas de Tochas, Fackelzug. Eu olho para esse rio de fogo e penso: qual era o verdadeiro, o profundo sentido desse espetáculo ígneo? Bem, claro, ele mostrava o poder da nova ordem. Intimidava, exaltava as almas simples. Mas o principal dessas Fackelzug é que elas ajudavam a transformar o homem em selvagem. Aliás, transformá-lo em selvagem numa situação solene. Assim, ao tornar-se selvagem, ele se sentiria um herói. E pronto para qualquer tipo de brutalidade, ele se sentiria muito útil ao Terceiro Reich: necessário, acima de tudo, para enfrentar tudo o que se opunha ao nazismo, tudo o que ficasse em seu caminho.”
Nessa altura, as tochas, que são centenas ou milhares, começam a formar uma suástica sobre a escuridão. Mikhail Romm comenta: “Não me posso resignar à ideia de que, na Alemanha, país de grande cultura, tinham chegado ao poder pessoas semianalfabetas, obtusas e presunçosas, que fizeram qualquer coisa para transformar o homem num selvagem exaltado”.
Seguem-se cenas de livros sendo incinerados nos pátios de universidades. Clássicos da literatura universal, de Leon Tolstoi a Thomas Mann, foram queimados nesses rituais. A gramática cinematográfica adotada por Romm nos mostra que as labaredas do nazismo – ou do fascismo, em sentido amplo – ardiam para reduzir a cultura a cinzas fumegantes.
Os cultores de Adolf Hitler e de Benito Mussolini – ignaros, intolerantes e brutos – sentiam-se autorizados por seus chefes a empregar a força física contra o que os apavorava e que eles, sem terem consciência do próprio pavor, transformavam no objeto de seu ódio. De cabeça erguida, como se fossem “heróis”, atearam fogo às ideias, às letras, ao desejo. Destroçaram bibliotecas, perseguiram pensadores e jornalistas, censuraram o que Hitler chamava de “arte degenerada”, espancaram mulheres livres, mataram homossexuais. Saíram às ruas como bestas, queimando suas bruxas imaginárias em seus infernos interiores e ergueram ditaduras sem limites.
Você pode até implicar com o diretor do filme, que não esboçou uma só crítica ao stalinismo, uma vertente de totalitarismo. Romm foi um expoente da cinematografia oficial soviética e nunca peitou o regime. Mesmo assim, há quem diga que nesse filme, subliminarmente, ele teria denunciado o “fascismo cotidiano” da União Soviética. Sabe-se lá.
De um jeito ou de outro, O Fascismo de Todos os Dias segue sendo uma reflexão arguta, tragicamente atual, que nos convida a pensar sobre o que a mera objetividade não nos permite enxergar. No velho documentário soviético vislumbramos o itinerário oculto pelo qual as tochas que glorificavam Hitler se arrastaram da Alemanha dos anos 1930 para os nossos dias e, agora, carregadas por anônimos que se sentem “heróis” em guerra contra índios, ecologistas, artistas e intelectuais, tacam fogo na Floresta Amazônica.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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