Estava na Argentina quando irromperam as queimadas no
Brasil. A diplomacia a que me imponho por haver sido presidente me obriga a
tratar com especial cuidado questões nacionais quando estou no exterior, ainda
que em país irmão.
De volta a casa, não posso deixar de constatar, com
preocupação, os graves danos causados pelo governo atual à imagem do País no
exterior. É difícil contestar a avalanche de críticas e afirmações, nem sempre
corretas, que deságuam nas mídias internacionais mais influentes. Isso porque o
desaguisado presidencial é extenso: ataque a valores universais de proteção ao
meio ambiente e aos direitos humanos, demonstrações de menosprezo pela ciência
e pela cultura, supostas relações com as milícias que compõem o trágico quadro
de violência no Rio de Janeiro, casos de nepotismo, e por aí vai. Por que e
para que tanto desatino?
Aparentemente, o presidente e seu círculo mais íntimo
parecem não haver entendido que não estamos mais na guerra fria. Não há mais o
confronto entre dois blocos ideológicos. Mesmo Donald Trump, capitaneando uma
relação comercial belicosa com a China e pensando em levantar muros na fronteira
mexicana, não se pauta pela lógica bipolar de um mundo dividido entre esquerda
e direita. Nem a China. Muito menos a Europa. Qual o sentido, pois, de fazer
desaforos ao presidente da França e sua esposa e em ressuscitar um nacionalismo
anacrônico? Os mais velhos hão de se lembrar do ardor nacionalista que aflorou
(à época com maior razão) diante do projeto de um think tank americano, Hudson
Institute, que nos anos 1960 aventou a ideia estapafúrdia de transformar a
Amazônia num grande canal de navegação alternativo ao do Panamá.
A reação dos europeus ao aumento das queimadas na Amazônia
responde a motivos distintos e não se deu de forma uniforme. Há uma preocupação
genuína com questões que têm impactos globais (mudança climática e extinção da
biodiversidade). Existem também razões menos universais, como a defesa de
interesses protecionistas, e motivações circunstanciais, como o receio de
derrotas em eleições locais a se realizarem no próximo ano. Em lugar de reagir
toscamente, negando dados empíricos e insultando cientistas e chefes de Estado
de outros países, deveríamos ter reagido prontamente para combater as queimadas
e mostrar, na prática, o compromisso soberano do Brasil com a proteção do meio
ambiente. Não há meio mais eficaz de desinflar a conjectura inaceitável sobre
conferir um estatuto internacional à Amazônia.
Nessas horas precisamos de bom senso e racionalidade,
virtudes difíceis num país polarizado. Patriotismo não se mede por bravatas
nacionalistas, sobretudo quando insultuosas. A proteção do bioma amazônico é,
acima de tudo, do interesse do Brasil, um interesse coincidente com o dos
demais países que compartilham esse bioma e também com o do planeta. Dadas as
restrições fiscais, recursos do exterior são bem-vindos. Não nos falta
capacidade para bem administrá-los, com transparência e em parceria com a
sociedade civil, que pode e deve ser aliada, e não inimiga na preservação do
meio ambiente e na realização de projetos de desenvolvimento.
Há queimadas que em parte são cíclicas, em parte são legais,
mas em grande parte (é preciso avaliar o tamanho) são criminosas: derrubada
ilegal de mata para queimá-la e transformar a floresta em pasto ou em áreas
para grãos. Se nos faltassem terras, vá lá, caberia a discussão sobre o que
fazer. Mas elas são abundantes e o agronegócio brasileiro, o que opera dentro
da legalidade, não precisa depredar para ser competitivo. Ao contrário, só
continuará a ser competitivo se não depredar, como prevê a Constituição e está
estatuído nas leis.
Enquanto vozes lúcidas do agronegócio clamam por
racionalidade, no governo há quem insista em distorcer os fatos. Como se fosse
pouco negar a validade de dados científicos, busca-se transformar vítimas em
algozes. Nessa linha, aponta-se a demarcação de terras indígenas – e não a atividade
predatória, ilegal e não raro associada ao crime organizado – como o grande
obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia.
É essa retórica de desinformação, insulto e incentivo a
práticas ilegais, reiterada ao longo de oito meses, a principal responsável
pela crise atual. De um lado, ela abriu a porteira para que os interessados no
desmatamento ilegal se sentissem autorizados a tocar fogo no cerrado e na
floresta. De outro, deu o pretexto para que a defesa de interesses
protecionistas se revestisse da capa de legitimidade da preocupação ambiental.
A retórica oficial tem sido danosa para os interesses do Brasil. Pode pôr em
risco até mesmo o acordo do Mercosul com a União Europeia.
De positivo, nesse quadro, só há dois pontos a destacar:
primeiro, a reação rápida e vigorosa de vários setores da sociedade brasileira;
segundo, a prontidão das Forças Armadas em responder à situação de emergência
provocada pelo descontrole das queimadas na Região Amazônica.
Com tanto horror perante os céus, como disse um poeta,
devemos aguentar firmes (imprensa, Congresso, Judiciários, líderes empresariais
e da sociedade civil) para não deixar que arroubos personalistas e interesses
familiares comprometam o futuro do País.
Creio que foi Otávio Mangabeira quem disse: a democracia é
como uma plantinha tenra, precisa ser regada todos os dias para crescer.
Trata-se agora de preservá-la. Como mostram muitos livros recentes sobre a
crise da democracia, a forma moderna de corrompê-la não passa por golpes
militares, mas por atos governamentais que, quando não encontram reação à
altura, pouco a pouco lhe vão arrancando as fibras.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. É preciso nos
mantermos atentos e fortes para que as instituições do Estado continuem a
cumprir, com independência, as obrigações impostas pela Constituição.
* Sociólogo, foi presidente da República.
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