Ainda não é possível dimensionar a extensão do dano
ambiental que a atual temporada de queimadas na Amazônia provocou. O estrago à
imagem do Brasil, no entanto, já é uma realidade – tornou-se gigantesco, sem
precedentes na recente história republicana. Em oito meses de gestão, o
presidente Jair Bolsonaro conseguiu um feito às avessas: aniquilou a reputação
do País em um dos poucos setores em que brilhávamos soberanos, o da preservação
das nossas florestas. Agiu como Nero, o Imperador tirano e autoritário que, para
reafirmar seu poder, ordenou o incêndio criminoso em Roma no trágico 18 de
julho de 64 d.C. Enquanto Roma ardia em chamas, Nero tocava sua harpa.
A chamada estação anual do fogo sempre existiu. É fato.
Bolsonero sabotou, porém, todas as formas de combatê-la ao anunciar sua
oposição às multas do Ibama, proibir que fossem destruídos equipamentos
clandestinos na mata, questionar os dados do INPE, demitir seu diretor e romper
com o Fundo Amazônia. Especialistas são unânimes em afirmar que o grau de desmatamento
é inversamente proporcional à fiscalização. Quando esta diminui, o outro
aumenta. É como se os desmatadores tocassem sua harpa de ouvido. Se o
mandatário inclina-se à permissividade, o sinal verde está dado para a valsa
fúnebre das queimadas.
Não à toa, o assunto dominou as manchetes de todos os
grandes jornais e TVs. Líderes se reuniram para debater o assunto e
celebridades como o ator Leonardo DiCaprio e o jogador Cristiano Ronaldo se
mobilizaram. A hashtag #PrayForAmazonia (reze pela Amazônia) foi a mais
compartilhada do planeta. É como se o dia 19 de agosto, quando o dia virou
noite em São Paulo por causa de uma frente fria associada à fuligem, tivesse
feito “cair a ficha” da comunidade internacional as queimadas desprovidas de
freio, que já preocupavam pelo discurso antiambiental de Jair Bolsonaro. Para o
Brasil, o episódio se revelou devastador.
A briga com Macron
O primeiro chefe de governo a denunciar a crise
internacional, às vésperas do G7, foi o presidente francês Emmanuel Macron. Ele
aproveitou a reunião para sensibilizar os outros chefes de Estado na cidade
francesa de Biarritz. O grupo evitou criticar o presidente brasileiro
diretamente e anunciou US$ 20 milhões de ajuda. Bolsonaro reagiu de forma
previsível — e lamentável. Atacou o francês, descartou o problema dos incêndios,
insinuou um complô externo, recusou o auxílio e deu combustível ao conflito.
Apostou no confronto falando com a bolha — seus apoiadores nas redes sociais. A
sua popularidade, já negativa no exterior, se deteriorou de vez quando ele
resolveu praticar seu esporte predileto: a verborragia desenfreada. Dessa vez,
no entanto, ele conseguiu ultrapassar os limites da civilidade. Sem escrúpulos
de delicadeza para com uma mulher, publicou no perfil oficial do presidente no
Facebook uma inefável estupidez contra a primeira-dama da França, Brigitte
Macron. Na visão de um apoiador-bajulador, o entrevero entre Emmanuel Macron e
o presidente brasileiro, por conta da crise ambiental, seria resultado da
“inveja” do presidente francês diante da “beleza” da primeira-dama brasileira,
Michelle Bolsonaro. A descortesia deveria passar despercebida, mas o presidente
preferiu endossá-la. “Não humilha, cara. Kkkkkkk”, respondeu o chefe do Poder
Executivo (leia mais a partir da página 28). Foi o que faltava para que todos se
voltassem contra ele — e consequentemente contra o Brasil.
“Quer que eu culpe os índios? Quer que eu culpe os
marcianos? É, no meu entender, um indício fortíssimo que é esse pessoal de ONG
que perdeu a teta deles. É simples” Jair Bolsonaro, presidente da
República
Os números são mais eloquentes do que o léxico adolescente
daquele que está acomodado na cadeira presidencial. Foram quase 28 mil focos
apenas em agosto, segundo o INPE, superando a média dos últimos 21 anos para o
mês. Confrontado com a realidade, o presidente preferiu apontar o dedo para as
próprias ONGs que lutam pela preservação. Depois, culpou produtores rurais,
provocando mais reações. Só se mexeu depois que a crise já fugia ao controle,
na sexta-feira 23. Anunciou o envio de tropas e foi à TV em rede nacional para
dizer que adotaria uma política de “tolerância zero” com as queimadas ilegais.
Convocou uma reunião de governadores da região na terça-feira 27, mas
decepcionou novamente. Em vez de anunciar medidas concretas de combate ao fogo,
preferiu atacar os governos passados que promoveram o aumento de reservas
indígenas e o “uso político da região”. Foi lembrado pelos próprios
governadores que atacar o presidente francês não resolvia o problema imediato,
e que as verbas do G7 não deveriam ser desperdiçadas. Somente após esse alerta
o chanceler Ernesto Araújo disse que o valor oferecido pelo britânico Boris
Johnson, 10 milhões de libras, seria aceito. E a medida mais efetiva só veio na
quarta-feira 28, quando Bolsonaro assinou um decreto que proíbe, por 60 dias, o
emprego do fogo no País.
O presidente é movido por doutrinas ultrapassadas. Desde os
anos 60 o Exército discute textos que pregam a integração do território como
imperativo da segurança nacional. O slogan “integrar para não entregar”
simbolizava o Plano de integração Nacional, de 1970, que previa a mobilização
de garimpeiros para explorar ouro. Esse projeto só foi aposentado no governo
Sarney. Essas teses fazem parte da retórica de Bolsonaro. Trata-se de um
orgulho nacionalista antiquado que não aceita o apoio de outros países à
região. Ao contrário, considera-os contrários aos interesses nacionais.
“Soberania da região e suas riquezas é o que, verdadeiramente, está em jogo”,
afirmou. O presidente, que estava escanteando o núcleo militar do governo, usou
a oportunidade para uma reaproximação. Escalou o general Villas Bôas, assessor
do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), para tuitar que a França estava
realizando “ataques diretos à soberania brasileira”, com “ameaças de emprego do
poder militar”.
Por suas ações, o governo realmente acredita que deve
aumentar o desmatamento e a ocupação. “Está ficando claro que promove um modelo
de desenvolvimento que não leva em conta valores ambientais, a biodiversidade e
os direitos dos povos indígenas. Pelo menos é essa a imagem que a comunidade
internacional está recebendo”, diz Aaron Cosbey, do Instituto Internacional
para o Desenvolvimento Sustentável, um think tank com escritórios no Canadá,
EUA e Suíça. A tese do “direito ao desenvolvimento”, que justificaria o
desmatamento e permeia o discurso oficial, já foi superada há muito tempo. E
isso ocorreu com uma ação hábil do próprio Itamaraty. A diplomacia brasileira
consolidou o conceito de desenvolvimento sustentável, que visa a queda nas
taxas de desmatamento florestal, a expansão da energia limpa e o aumento da
produção e da produtividade agrícola — as ações que o governo deveria estar
implementando. Trata-se de um equívoco econômico e estratégico. As queimadas
ilegais minam a riqueza potencial e comprometem a saúde das próximas gerações.
De turismo a produtos farmacêuticos, há um mar de oportunidades na região.
Fechando os olhos para a devastação, o governo na verdade coloca em risco o
agronegócio, que não precisa eliminar florestas para se expandir — como afirmaram
os líderes dos produtores.
A crise de imagem, por outro lado, torna o Brasil vulnerável
ao protecionismo, que cresce no mundo. O tema ambiental é conveniente para quem
teme o potencial econômico brasileiro. Há a pressão de lobbies agrícolas europeus,
mas creditar a reação de países como a França apenas a esses interesses — como
fez Bolsonaro — é uma miopia, que pode prejudicar tratados comerciais como o
acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, negociado por
mais de 20 anos. Essa ameaça foi amenizada, num primeiro momento, pela
chanceler alemã, Angela Merkel, e pelo premiê britânico, Boris Johnson. E
parece distante com o recém-fechado acordo de livre comércio do Mercosul com
Noruega, Suíça, Liechtenstein e Islândia. Mas poderá haver consequências. A
União Europeia pode suspender a importação de carne e soja do Brasil — ameaça
feita pela Finlândia, que ocupa a presidência rotativa do bloco. Pior, há um
risco de haver um movimento dos próprios consumidores contra produtos nacionais,
ainda que a maior parte dos itens exportados seja formada por commodities.
“Mesmo se não ocorrer um veto governamental organizado contra a carne
brasileira, certamente haverá pedidos de boicote por parte de consumidores, que
vão pressionar os supermercados para não comprarem itens brasileiros”, diz
Aaron Cosbey.
A crise pode ter novos desdobramentos. Juristas brasileiros
preparam uma denúncia contra o presidente por crime ambiental contra a
humanidade, a ser apresentada ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia,
na Holanda. Bolsonaro pode ser responsabilizado por ecocídio. Seria uma
reviravolta no conceito externo do País. O Brasil até recentemente era um dos
líderes na agenda ambiental, com um dos códigos florestais mais restritivos do
mundo e 60% de reservas florestais preservadas. Mas o presidente parece não
entender a natureza do problema. Tenta emular Donald Trump, que tem a seu favor
o poder e influência de seu país — e foi um dos poucos líderes a lhe dar apoio.
No caso brasileiro, a imitação soa ridícula. Bolsonaro age contra os interesses
nacionais ao confundir progresso com destruição de patrimônio levada a cabo por
uma agenda arcaica. Assim, dá razão ao jornal The New York Times, que, enquanto
a Amazônia ardia, o classificou como “o menor e mais mesquinho” dos líderes
mundiais. Como um dia já foi tachado Nero.
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