Palpite infeliz, de Noel Rosa, é um marco da nossa música
popular. O samba, composto em 1935, praticamente pôs um ponto-final na sua
polêmica com outro grande sambista, Wilson Batista, que havia glamorizado a
malandragem no samba Lenço no pescoço, que fazia a apologia do sujeito
desocupado e bom de briga; Noel respondeu com o samba Rapaz folgado, uma
crítica àquele estilo de vida.
Wilson não deixou por menos e tentou ridicularizar Noel, no
samba O mocinho da Vila, ao qual o poeta respondeu com o antológico Feitiço da
vila. Nessa altura da polêmica, os dois monopolizavam a audiência nas rádios e
as conversas de botequim. Wilson responde novamente, com Conversa Fiada, mas
Noel retruca com outra obra-prima: Palpite infeliz, cuja letra, em certo
trecho, diz: “Pra que ligar a quem não sabe/ Aonde tem o seu nariz?/ Quem é
você que não sabe o que diz?/ Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do
Céu, que palpite infeliz!”. Wilson ainda compôs Frankenstein, uma alusão ao
defeito facial de Noel, grosseria que o compositor da Vila Isabel ignorou, e
Terra de cego, aos quais Noel respondeu com Deixa de ser convencido. A homérica
disputa musical, porém, já estava decidida: os sambas Feitiço da Vila e Palpite
infeliz são cantados até hoje.
Ideia infeliz foi o vídeo postado no Twitter do presidente
Jair Bolsonaro na segunda-feira, no qual um leão, representando Bolsonaro, é
cercado e atacado por várias hienas ao redor, numa alusão aos supostos inimigos
do presidente da República, entre os quais estaria o Supremo Tribunal Federal
(STF). O vídeo permaneceu no ar por duas horas e causou perplexidade, porque
disparava em todas as direções: imprensa, partidos políticos — como o PCdoB, o
PT e o próprio PSL, ao qual Bolsonaro é filiado —, a Organização das Nações
Unidas (ONU), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições foram
identificadas como as hienas.
Ontem, o presidente Jair Bolsonaro pediu desculpas ao
Supremo Tribunal Federal (STF). Participava de encontros bilaterais na Arábia
Saudita e comentou o caso em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo: “Me
desculpo publicamente ao STF, a quem porventura ficou ofendido. Foi uma
injustiça, sim. Corrigimos e vamos publicar uma matéria que vai para esse lado
das desculpas”. A reação do presidente da República foi provocada por duras críticas
do decano do STF, ministro Celso de Mello, que costuma ser o porta-voz da Corte
nessas situações.
Surpresa
A nota de Celso de Mello foi dura, porém, com uma porta
aberta para a retratação de Bolsonaro: “A ser verdadeira a postagem feita pelo
Senhor Presidente da República em sua conta pessoal no Twitter, torna-se
evidente que o atrevimento presidencial parece não encontrar limites”. O
ministro defendeu a separação dos Poderes e fez uma alusão ao rei das selvas:
“É imperioso que o senhor presidente da República — que não é um “monarca
presidencial”, como se o nosso país absurdamente fosse uma selva na qual o leão
imperasse com poderes absolutos e ilimitados — saiba que, em uma sociedade
civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder
Judiciário independente, como o é a magistratura do Brasil”.
No exterior, o presidente Bolsonaro foi pego de surpresa
pelo vídeo, cuja origem disse desconhecer, mas todos suspeitam que tenha sido
uma iniciativa do vereador carioca Carlos Bolsonaro, que gerencia as mídias
sociais do pai e costuma aprontar no Twitter. O vídeo está em linha com a
estratégia de vitimização do pai em relação às dificuldades do governo, e
sintonizado com a insatisfação das bases de Bolsonaro com o Supremo Tribunal
Federal (STF). O filho nega autoria e, no Twitter, disse que foi coisa do
próprio presidente da República.
Ocorre que a posição de Carluxo, como é chamado no Palácio
do Planalto, não está afinada com os interesses do pai e do irmão, senador
Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), beneficiado por uma liminar do presidente do
Supremo, ministro Dias Toffoli, que suspendeu todas as investigações com base
em dados fiscais sigilosos obtidos sem autorização judicial. A liminar
paralisou as investigações do caso Fabrício Queiroz, ex-assessor do parlamentar
na Assembleia Legislativa fluminense.
A propósito do Supremo, ontem, Dias Toffoli encaminhou aos
presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-RJ), e da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-AP), uma proposta para impedir a prescrição de processos até o fim do
julgamento de recursos nos tribunais superiores. A prescrição se dá quando
decorre o tempo máximo que o Judiciário tem para aplicar punição pelo crime. A
proposta foi bem-recebida por Maia e tem o objetivo de mitigar o impacto da
mudança de jurisprudência quanto à execução da pena após condenação em segunda
instância, que está em julgamento no Supremo e deve ser alterada,
restabelecendo o princípio do “trânsito em julgado”.
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