Burocráticos, partidos vivem à sombra do Estado e dificultam
renovação
A força da burocracia partidária no Brasil, fruto de modelo
sustentado por verbas estatais, que favorece caciques e dificulta a renovação,
ganha evidência com decisão de Bolsonaro de criar sigla e com punições a
deputados que fugiram à orientação de seus partidos.
Um candidato à Presidência da República filia-se a um novo
partido sete meses antes das eleições. Empossado no cargo, rompe com seus
correligionários e anuncia a criação de uma nova sigla antes de completar seu
primeiro ano de governo.
Excêntrica se examinada pela lupa de democracias mais
consolidadas, essa história é bastante plausível para quem acompanha a
inconstante trajetória das lideranças políticas nos partidos brasileiros.
Levando-se em conta que o presidente é Jair Bolsonaro e tudo o que marcou sua
campanha eleitoral, a história soa inusitada, para dizer o mínimo, mesmo para
os padrões nacionais.
No bojo de sua vitória, Bolsonaro levou seu antigo partido,
o PSL, a ser o mais votado nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2018,
embora tenha eleito menos deputados que o PT. Além disso, a “onda Bolsonaro”
contribuiu para a eleição de quatro senadores e dezenas de deputados estaduais.
Por que então Jair Bolsonaro, com todo seu capital político,
abandonou o partido que ajudou a transformar em um dos maiores fenômenos da
história das eleições no Brasil e anunciou a intenção de uma nova legenda, a
Aliança pelo Brasil? Como um presidente da República se mostrou incapaz de
retirar do controle de sua legenda um desafeto, o deputado federal Luciano
Bivar, um parlamentar quase desconhecido em âmbito nacional?
Outros episódios recentes mostraram a força das direções
partidárias no país. Os diretórios nacionais do PSB e do PDT puniram 17
deputados federais por terem votado a favor da reforma da Previdência
apresentada pelo governo. O PDT suspendeu de suas atividades e abriu processo
contra oito deputados. O PSB expulsou o deputado Átila Lira e também suspendeu
outros oito de suas atividades.
Trata-se do maior número de punições por descumprimento de
decisões partidárias na história da Câmara dos Deputados.
Em ambas as siglas, congressistas alegaram que teriam
recebido sinal verde no momento da filiação para não seguir a orientação da
liderança nas votações no Congresso.
Os casos do presidente da República e dos deputados punidos
contrariam a visão tradicional de fragilidade dos partidos brasileiros. Nos
dois episódios, chama a atenção a força das burocracias partidárias.
O que é um partido político? Na definição mais trivial,
encontrada em antigos manuais de ciência política e direito constitucional, é
uma organização composta por cidadãos que ambicionam chegar ao poder por
intermédio do voto.
O partido teria essa dimensão híbrida, uma associação civil
que ora ocupa o Estado, ora se encontra fora do Estado. Como uma associação,
necessitaria de militantes para cuidar de sua estrutura, divulgar suas ideias e
contribuir financeiramente para sua manutenção. Os partidos se distinguiriam
ainda por professarem diferentes ideologias e diferentes propostas de políticas
públicas.
Nada mais distante da prática recente do que essa definição.
No Brasil, mais que uma associação de cidadãos que ocasionalmente chega ao
poder, os partidos se assemelham a uma organização paraestatal, uma entidade
fomentada pelo Estado mesmo que não faça parte da administração pública. Como é
o caso, por exemplo, das organizações sociais (OSs), das entidades do Sistema
S, como Sesi e Senac, e de organizações da sociedade civil de interesse público
(Oscip).
Desde a promulgação da Lei dos Partidos Políticos, em 1995,
registrar uma nova legenda passou a ser tarefa dificílima. Não tenho notícia de
outro país em que seja tão árdua. É necessário o apoio, por intermédio de
assinaturas, de 492 mil eleitores. Cada assinatura é checada pelos cartórios
eleitorais em um processo que pode demorar anos.
Desde que a lei entrou em vigor, apenas dez partidos foram
criados. Nenhum foi registrado nos últimos quatro anos —o último deles, o
Partido da Mulher Brasileira, surgiu em setembro de 2015. Será um milagre se
Bolsonaro conseguir que seu novo partido dispute as eleições municipais do
próximo ano, dadas as exigências da Justiça Eleitoral.
No Brasil, o Estado controla também a listagem de filiados
às legendas. Estabelecer um vínculo formal com uma agremiação política vai
muito além de apenas de criar laços com o grupo. A filiação oficial pressupõe o
preenchimento de uma ficha de inscrição junto à Justiça Eleitoral. Só pode ser
candidato quem se filiar a um partido no mínimo seis meses antes da eleição.
É no financiamento, contudo, que a dimensão paraestatal dos
partidos brasileiros fica mais evidente. O volume de recursos recebido do
Estado é bastante amplo. Não identifiquei até hoje nenhum caso similar no
mundo. Além do fundo eleitoral e da propaganda veiculada em ano de eleição, os
partidos passaram a receber generosos recursos para fazer campanha. O valor
para a disputa em 2020 ainda não está definido, mas no pleito de 2018 foram
gastos R$ 1,7 bilhão em pouco mais de 60 dias de campanha oficial.
Um último aspecto importante do controle da vida partidária:
cabe à Justiça Eleitoral a decisão final sobre os casos em que políticos
abandonam os partidos pelos quais foram eleitos. Centenas de eleitos perderam
seus mandatos após tribunais eleitorais considerarem improcedente a troca de
legenda.
Nesse quadro, a Justiça Eleitoral tornou-se uma grande
máquina de regulação partidária. Tem o poder de aceitar o registro de novas
legendas, controlar a filiação dos cidadãos, distribuir dinheiro para partidos
e campanhas, fiscalizar os gastos e ainda julgar a procedência das trocas de
legenda.
Os cientistas políticos Peter Mair e Richard Katz batizaram
de partido de cartel esse novo modelo de agremiações políticas, cada vez mais
regulado pelo Estado e, sobretudo, cada vez mais dependente da transferência
dos recursos estatais. Com financiamento assegurado, os partidos dependem menos
do trabalho voluntário de seus militantes. A revolução produzida pela internet
e pelas redes sociais tornou essa necessidade ainda menor.
Hoje quase todos os partidos recebem recursos que lhes
permitem manter uma sede em âmbito nacional, contratar funcionários e financiar
a realização de eventos. Em anos eleitorais, ainda recebem verbas para as
campanhas e tempo de difusão de propaganda no rádio e na TV.
Lembro que nos anos 1980 e 1990 um dos maiores desafios de
fazer uma reunião partidária era pagar as passagens dos dirigentes. Na era do
financiamento público, isso já não é problema para boa parte das legendas.
Neste cenário em que os partidos dependem cada vez mais do
Estado para sua manutenção e criam uma burocracia para administrar esse novo
status, o incentivo para renovação diminui. Para que atrair jovens para suas
atividades? Qual é o estímulo para adotar mecanismos de consulta aos filiados ou
instituir a participação via eleições primárias?
Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou uma
diminuição na proporção de jovens filiados nos últimos anos. Em 2008, havia
5,2% deles (de 16 a 24 anos) inscritos nas siglas do país; em 2019 o percentual
caiu para 1,5%. Nos partidos mais tradicionais, o percentual de jovens é
reduzido: 0,8% no PT, 1,4% no PSDB, 0,6 % no DEM e 0,8% no MDB. No total de
eleitores, esse segmento representa 14%.
Mas nesta década, houve um maior interesse da juventude pela
política em sentido mais geral. São exemplos as manifestações de 2013 e 2015, o
engajamento no debate nas redes sociais, o envolvimento na campanha
presidencial de 2018. Mesmo assim, esse fenômeno não se traduziu na filiação em
massa de jovens. Pelo contrário, houve queda de 658 mil para 247 mil no número
de cadastrados.
Há muitas causas para o afastamento dos jovens da atividade
partidária e o consequente envelhecimento dos líderes. Creio que a mudança
recente na natureza dos partidos é uma delas. As siglas transformaram-se em
organizações pesadas, com muito pouco incentivo para desempenhar o tradicional
papel de intermediárias entre sociedade e Estado. Colaram-se ao Estado,
afastaram-se da sociedade. O alheamento juvenil é uma evidência desse
distanciamento.
Simultaneamente a isso, surgiu no país um conjunto de
associações que conseguiu atrair jovens para as suas fileiras. Entre as mais
destacadas estão o RenovaBR, o Acredito, o Livres e o Agora, além do MBL.
Embora tenham diferentes estratégias de atuação e doutrinas, movem-se por um
propósito comum: oferecer uma formação política e estimular a juventude a
entrar na vida partidária.
A proposta parece bem razoável. Já que os partidos não têm
conseguido se renovar e formar quadros qualificados, as novas associações
serviriam para ocupar esse lugar. Algumas delas resolveram agir mais
ativamente, influenciando a atividade de seus representantes no Legislativo
—seus deputados dão a impressão de que estão apenas abrigados nas siglas. A
prioridade é defender a pauta desses movimentos, e não o programa do partido.
A carta-compromisso celebrada entre o Acredito e o PDT-SP em
abril de 2018 é reveladora da independência ambicionada pelo movimento —e, o
que é mais curioso, aceita pelo partido. Em um trecho, lê-se: “O PDT se
compromete a respeitar a autonomia política e de funcionamento do Acredito, bem
como a identidade do movimento e de seus representantes”.
É possível que alguns deputados estabeleçam uma nova forma
de mandato, com grande autonomia em relação aos partidos, e inovem em diversos
aspectos: contratação de assessores por concurso; audiência online para que os
eleitores decidam onde investir os recursos das emendas parlamentares; consulta
online para saber o que os eleitores pensam sobre determinado assunto. Um deputado
estadual do Rio, representante de um desses movimentos, comparou seu mandato a
uma empresa startup.
O problema é que esse tipo de mandato drena a energia
renovadora desses movimentos para fora da política partidária e alimenta uma
ilusão: a de que é possível prescindir dos partidos.
A quem alimenta essas fantasias, sugiro as seguintes
reflexões: como as decisões seriam tomadas em um Congresso com 513 deputados
empreendedores? Como o debate sobre politicas públicas seria feito sem a
agregação dos diversos interesses da sociedade realizada em associações
definidas? Ou como uma eleição seria realizada sem que os partidos
selecionassem os nomes dos cidadãos aptos a concorrer?
O desencanto com os partidos políticos no Brasil estimulou
alguns intelectuais e ativistas de movimentos sociais a defenderem a
implementação da candidatura avulsa. A ideia é muito simples: cidadãos poderiam
concorrer a um cargo eletivo sem estarem filiados a um partido.
A candidatura avulsa seria o outro lado da face do mandato
gerencial defendido pelos movimentos de renovação. Se a norma estivesse em
vigor, não haveria punição para os parlamentares que não seguiram a orientação
partidária.
A deputada federal Tabata Amaral, uma das punidas pelo PDT,
por exemplo, defenderia suas ideias, votaria a favor da reforma da Previdência
e prestaria conta a seus eleitores. Nada de bancada, diretório nacional ou
programa partidário.
Algumas democracias, sobretudo as que utilizam o sistema
eleitoral majoritário-distrital, permitem que cidadãos não vinculados a
partidos concorram. Assim, em um determinado distrito, candidatos independentes
podem se apresentar. Poucos, contudo, conseguem se eleger para o Legislativo
nacional. No Reino Unido, por exemplo, apenas dois independentes conseguiram
uma vaga na Câmara dos Comuns nos últimos 20 anos.
No Brasil, a adoção da candidatura avulsa esbarra em dois
problemas logísticos. O primeiro é que adotamos a representação proporcional,
em que cada partido apresenta uma lista de candidatos. Os avulsos comporiam uma
lista específica (ou seja, um partido de avulsos)? Teriam que ultrapassar o
quociente eleitoral?
Outro obstáculo é o grande número de candidatos já
existentes. Quem estaria apto a concorrer? Os independentes também receberiam
recursos públicos para as suas campanhas? Como organizar o tempo de TV entre os
milhares de candidatos que seriam inscritos? E a fiscalização das campanhas?
As histórias de um presidente da República que não controla
o seu partido e dos deputados que acreditaram poder votar contra a orientação
de suas legendas demonstram que a organização partidária é um aspecto essencial
a ser considerado para entendermos o sistema representativo brasileiro.
Minha hipótese é que a força dos partidos brasileiros
estaria associada ao processo pelo qual eles se transformaram em entidades
paraestatais. Neste quadro, os dirigentes que controlam os recursos passam a
ter um poder desproporcional em relação a outros segmentos da sigla. Com um
mercado fechado (novos partidos não são criados facilmente) e com poucos
incentivos para renovação, os partidos tornaram-se organizações pesadas e pouco
atraentes para os jovens.
O leitor deve ter percebido que, a despeito de criticar o
modelo de representação política em vigor no país, não antevejo uma forma de as
democracias funcionarem sem os partidos. Eles precisam, todavia, de abertura,
capturar a vitalidade do país e atrair uma parte dos cidadãos que passou a se
interessar pela política nos últimos anos.
A pasmaceira da vida partidária brasileira será chacoalhada
agora por Bolsonaro e sua Aliança pelo Brasil. Quase todos os analistas
enfatizaram a estranheza do gesto: um político com largo vaivém partidário
(esteve em oito siglas em 30 anos de carreira política) e evidente desinteresse
pelo aperfeiçoamento do sistema resolve criar uma agremiação.
Para além das intenções e da inaptidão partidária do
presidente, vale observar em que medida ele será capaz de agrupar em sua
legenda parte dos milhões de seguidores que cultiva nas redes sociais.
Desde a redemocratização, pela primeira vez uma liderança
popular de direita se envolverá na tentativa de organizar um partido. Fernando
Collor transformou o Partido da Juventude (PJ) no Partido de Reconstrução
Nacional (PRN) para viabilizar a sua candidatura à Presidência, mas não fez
praticamente nenhum movimento para ampliar a sigla.
Há muitas experiências recentes que poderiam inspirar a
renovação no Brasil. Na Espanha, na Itália e na França, novas legendas
trouxeram milhares de cidadãos para a atividade partidária. Na Argentina e no
Uruguai, os partidos utilizam as eleições primárias para escolher seus
candidatos. Na Inglaterra, os militantes do Momentum, um movimento criado
originalmente para persuadir os eleitores a comparecerem às urnas, se filiaram
ao Partido Trabalhista e ajudaram a modernizá-lo.
Ainda é muito cedo para avaliar se a Aliança pelo Brasil se
transformará em um partido relevante. Permitam-me, a despeito disso, uma dose
de ceticismo em relação à sua capacidade de renovar a política brasileira. O
PSL sofreu os males de ter, repentinamente, virado um grande destinatário de
recursos estatais (dinheiro e tempo de TV em demasia) e está entrando em
colapso. Por que seria diferente com a Aliança?
*Jairo Nicolau, cientista político, é pesquisador do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV. Escreveu
o livro “Representantes de Quem? Os Des(caminhos) do Seu Voto, da Urna à Câmara
dos Deputados” (ed. Zahar, 2017).
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