sexta-feira, 29 de novembro de 2019

SOB A NÉVOA DA GUERRA

Alexandre Schneider, Folha de S.Paulo
“Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico. Este é realmente o objetivo básico.”
Assim o então ministro da fazenda, Antonio Delfim Neto, justificava seu voto a favor do AI-5, a mais arbitrária medida promovida pela ditadura militar no Brasil, que calou o congresso, a imprensa, as artes, a justiça e promoveu violações em série aos direitos humanos.
Esta semana o ministro Paulo Guedes voltou no tempo. Para o ministro, ninguém deve se surpreender caso a resposta a eventuais manifestações contrárias ao governo seja a defesa de um novo AI-5.
Algo inaceitável em uma democracia, a defesa da restrição de direitos e a apologia à ditadura estão aos poucos se transformando em prática corriqueira na esplanada.
Assim como o bate-boca em redes sociais, com direito ao uso de expressões chulas que ferem a dignidade do cargo, como seguidas vezes age nosso ministro da educação. “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”, disse o então ministro Jarbas Passarinho, na fatídica sessão que aprovou o AI-5.
Todo o barulho desses 11 meses de gestão opera em dois campos, o simbólico e o real. No campo simbólico trata-se de atacar diariamente as instituições democráticas como o Congresso, a Justiça e a própria Constituição.
A educação pública é vista como um espaço de doutrinação e destruição dos valores da família brasileira. A preservação da Amazônia como um mero discurso de ONGs internacionais, que cobiçam sua riqueza natural.
Defende-se a liberação de armas de fogo e a possibilidade dos proprietários de terras reagirem a bala em caso de invasão de propriedade.
A lista é longa. Contribui para corroer ainda mais a confiança nas instituições democráticas e a ideologizar questões que não são “de direita” ou “esquerda”, como é o caso da defesa de uma escola pública laica, do uso sustentável dos nossos recursos naturais, de políticas de segurança baseadas em evidências consagradas, como a de que armar a população só aumenta a violência.
O discurso também estabelece um estado de fricção permanente, que permite ao governo controlar a narrativa, estabelecendo o campo do jogo político e da comunicação.
Ao mesmo tempo coloca uma névoa sobre a adoção de políticas extremamente impopulares em um país como o Brasil, como taxar desempregados, reduzir investimentos em educação pública e na rede de proteção social.
No caso da educação, opera-se um desmonte dos mecanismos de financiamento. De um lado o governo mostra desinteresse na tramitação do Fundeb, o principal fundo público de financiamento à educação, que vence no fim do ano que vem. De outro propôs a junção entre os mínimos constitucionais de saúde e educação e a inclusão da folha de aposentados no orçamento da educação.
Além da questão política —os investimentos em saúde, em geral, têm mais retorno político que os da educação— a saúde é uma área com custos crescentes, muitas vezes descolados da inflação. Mesmo que a ampliação dos gastos com saúde não se dê reduzindo os investimentos em educação, as demais medidas propostas, se aprovadas, contribuirão para sua redução.
Tomemos como exemplo o orçamento executado da cidade de São Paulo em 2018. O valor livre para investimentos e manutenção da rede de ensino foi de R$ 1.9 bilhões. O total de gastos com servidores aposentados foi de R$ 3.6 bilhões naquele ano.
Caso a cidade de São Paulo seguisse as regras propostas, teria que deixar de comprar material didático, reformar escolas, servir merenda escolar, transportar alunos, reduzir o número de crianças matriculadas em creche ou o número de alunos das demais etapas de ensino.
Pela primeira vez o país tem um governo que professa a fé no estado mínimo. Defender mais ou menos participação do estado na economia faz parte do jogo democrático. O que é inaceitável é flertar com o autoritarismo e com a página mais infeliz de nossa história.
Em uma democracia, o perigo não é a revolta, mas o silêncio.
Alexandre Schneider
Pesquisador visitante da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP, consultor e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.
Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário