Em março, Jair Bolsonaro revelou que não via o Brasil como
“um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo”.
“Nós temos é que desconstruir muita coisa”, explicou, em jantar com ideólogos
da extrema direita americana.
O capitão tem seguido o plano à risca. Desde a posse, ele
atua para capturar órgãos de controle, esvaziar mecanismos de participação
popular e acuar o Legislativo e o Judiciário. O movimento tem um objetivo
claro: remover limites ao poder presidencial.
Há três meses, a arquitetura da destruição chegou ao
Conanda, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Por
decreto, o presidente cassou todos os integrantes do colegiado, que tinham
mandato até o fim de 2020. A canetada submeteu a escolha de novos conselheiros
à ministra Damares Alves, representante da bancada evangélica na Esplanada.
Bolsonaro já havia anunciado a intenção de esvaziar e
extinguir conselhos “para que o governo possa funcionar”. “Não podemos ficar
refém de conselhos”, afirmou, como se a sociedade civil só tivesse direito a se
manifestar no dia da eleição.
Num país em que a exploração sexual e o trabalho infantil
são problemas crônicos, o ataque ao Conanda representa mais um retrocesso
civilizatório. O presidente só não pode ser acusado de esconder o que pensa. Na
campanha, ele disse que o Estatuto da Criança e do Adolescente deveria ser
“rasgado e jogado na latrina”. “É um estímulo à vagabundagem e à malandragem
infantil”, vociferou.
Os integrantes do conselho já esperavam dificuldades, mas
ficaram chocados com as cassações, que remetem ao arbítrio da ditadura militar.
“É inaceitável que o Executivo atue desta forma. Estamos num cenário de
enfraquecimento de tas instituições de participação social no Brasil”, resume a
conselheira Thais Dantas, advogada do Instituto Alana.
Ela conta que o órgão já estava paralisado desde o início do
ano, quando o governo extinguiu cargos técnicos, atrasou a convocação de
reuniões e se recusou a fornecer passagens aos conselheiros que não moram em
Brasília.
Na quinta-feira, o ministro Luís Roberto Barroso atendeu a
pedido da procuradora Raquel Dodge e suspendeu os trechos do decreto que
afrontam a Constituição. Ele anulou a cassação dos conselheiros e alertou para
os riscos de um fenômeno que tem sido chamado de “constitucionalismo abusivo”
ou “legalismo autocrático”.
Nas palavras do ministro, “os retrocessos democráticos, no
mundo atual, não decorrem mais de golpes de Estado com o uso das armas”. Os
autocratas do presente comem o mingau pelas beiradas. Enfraquecem as
instituições, capturam os fiscais e “vão progressivamente corroendo a tutela de
direitos”.
“O resultado final de tal processo tende a ser a migração de
um regime democrático para um regime autoritário, ainda que se preserve a
realização formal de eleições”, afirmou Barroso, citando os exemplos de
Hungria, Polônia e Venezuela. O ministro fez questão de ressaltar uma regra
básica da democracia: “Os atos discricionários do presidente da República
encontram limite na Constituição e nas leis”. No Brasil de 2019, é sempre bom
lembrar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário