A Constituição
brasileira de 1988 é o mais avançado instrumento de promoção da
família, da moral e dos bons costumes na história do país. Família, moral e
bons costumes se definem ali pela pluralidade. Se é verdade que, ao menos na
promessa jurídica, eu, você ou qualquer outro brasileiro somos livres e iguais,
decidir como e com quem viver cabe a cada um de nós e nossas circunstâncias.
Há também uma visão sobre Deus e sobre Brasil na
Constituição. A pluralidade, outra vez, dá a tônica. Nada a ver com "Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos". A retórica do "acima de
tudo, acima de todos", slogan de tragédias do passado, traz de contrabando
um pacote fechado: um Deus, um modelo de família, um código de bons costumes,
um modo correto de ser cidadão e de se portar na vida privada.
Nosso pacto constitucional vai na direção inversa. Não
ignora a necessidade de se valorizar a família e a crença religiosa (ou a falta
dela), nem de se ter parâmetros claros sobre bons costumes. Mas em vez de
excluir o indivíduo diferente de qualquer padrão estatístico, opta por
incluí-lo e por protegê-lo.
Não fosse essa preocupação, não teria se comprometido com
"sociedade livre, justa e solidária", com o amplo catálogo de
direitos e deveres, nem colocado a dignidade humana, a família e a prioridade
absoluta da criança no centro dessa arquitetura.
Ninguém precisa obedecer a uma camisa-de-força "acima
de tudo". Nem o Estado pode estabelecer hierarquia entre melhor e pior
tipo de família, premiar a primeira e punir a segunda.
A pluralidade não é só uma filosofia política, mas uma
realidade no país. No Brasil contemporâneo, além da diversidade racial e
religiosa que marcam sua história, surgem múltiplos modos de se constituir,
dissolver e reconstituir famílias, independentemente do casamento ou da
sexualidade. O afeto, o cuidado e a cooperação econômica, ou a perversão, a
violência e o abuso, não são exclusividade de nenhuma delas.
A "família brasileira" não existe; "famílias
brasileiras", sim. O Censo de 2010, por exemplo, mostra que família
composta por casal heterossexual e filhos está presente em menos da metade dos
domicílios do país. Famílias monoparentais femininas (mãe solo) totalizam 15%,
as masculinas (pai solo), 2%.
Arranjos
homoafetivos, com ou sem filhos, aumentam. Também as "famílias
reconstituídas", onde se reúnem madrastas, padrastos, ex-esposas,
ex-esposos, enteados, meio-irmãos etc. Foram apelidadas de
"famílias-mosaico". A família patriarcal do “pai soturno, mulher
submissa, filhos aterrados”, como disse Paulo Prado, vai regredindo.
Esse dado é uma pedra no sapato de Jair Bolsonaro.
Seu governo age não só contra a Constituição, mas contra a demografia. Aliou-se
a Arábia Saudita e Bahrein e excluiu
o termo "gênero" de textos oficiais. Seu ministro
desqualifica homossexuais como "coisa abstrata".
O Ministério
dos Direitos Humanos retirou direitos LGBTs da lista de suas
prioridades. A Ancine e outros mecanismos estatais de subvenção da cultura
fazem filtro de "bons costumes" com a mira, sobretudo, em temas LGBT.
Tudo em nome da "família", um mandato que o "povo" lhes
teria outorgado nas eleições.
A distorção ardilosa do conceito de democracia tem sido
método da retomada autoritária no mundo. Herbert Hart, filósofo liberal do séc.
20, diante da tentativa de o governo britânico regular a sexualidade, lembrava
que "há muitas coisas que nem um governo democrático pode
fazer".
Hart resumiu assim o "populismo moral", essa
trapaça anti-liberal que o bolsonarismo tenta nos aplicar: "a visão de que
a maioria tem o direito moral de ditar como todos devem viver é um
mal-entendido da democracia que ainda ameaça a liberdade individual".
A única maneira de honrar a família, a moral e os bons
costumes, em sua versão constitucional, é reagir à investida autoritária. A
outra versão ataca sua família, certamente sua liberdade. Enquanto isso,
Bolsonaro poderia se preocupar com sua própria família, onde maus costumes não
faltam. Não é moralismo, só constatação jurídica.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em
direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von
Humboldt.
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