quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

EM DEFESA DA FAMÍLIA, DA MORAL E DOS BONS COSTUMES

Conrado Hübner Mendes, Folha de S.Paulo
Constituição brasileira de 1988 é o mais avançado instrumento de promoção da família, da moral e dos bons costumes na história do país. Família, moral e bons costumes se definem ali pela pluralidade. Se é verdade que, ao menos na promessa jurídica, eu, você ou qualquer outro brasileiro somos livres e iguais, decidir como e com quem viver cabe a cada um de nós e nossas circunstâncias.
Há também uma visão sobre Deus e sobre Brasil na Constituição. A pluralidade, outra vez, dá a tônica. Nada a ver com "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". A retórica do "acima de tudo, acima de todos", slogan de tragédias do passado, traz de contrabando um pacote fechado: um Deus, um modelo de família, um código de bons costumes, um modo correto de ser cidadão e de se portar na vida privada.
Nosso pacto constitucional vai na direção inversa. Não ignora a necessidade de se valorizar a família e a crença religiosa (ou a falta dela), nem de se ter parâmetros claros sobre bons costumes. Mas em vez de excluir o indivíduo diferente de qualquer padrão estatístico, opta por incluí-lo e por protegê-lo.
Não fosse essa preocupação, não teria se comprometido com "sociedade livre, justa e solidária", com o amplo catálogo de direitos e deveres, nem colocado a dignidade humana, a família e a prioridade absoluta da criança no centro dessa arquitetura.
Ninguém precisa obedecer a uma camisa-de-força "acima de tudo". Nem o Estado pode estabelecer hierarquia entre melhor e pior tipo de família, premiar a primeira e punir a segunda.
A pluralidade não é só uma filosofia política, mas uma realidade no país. No Brasil contemporâneo, além da diversidade racial e religiosa que marcam sua história, surgem múltiplos modos de se constituir, dissolver e reconstituir famílias, independentemente do casamento ou da sexualidade. O afeto, o cuidado e a cooperação econômica, ou a perversão, a violência e o abuso, não são exclusividade de nenhuma delas.
A "família brasileira" não existe; "famílias brasileiras", sim. O Censo de 2010, por exemplo, mostra que família composta por casal heterossexual e filhos está presente em menos da metade dos domicílios do país. Famílias monoparentais femininas (mãe solo) totalizam 15%, as masculinas (pai solo), 2%.
Arranjos homoafetivos, com ou sem filhos, aumentam. Também as "famílias reconstituídas", onde se reúnem madrastas, padrastos, ex-esposas, ex-esposos, enteados, meio-irmãos etc. Foram apelidadas de "famílias-mosaico". A família patriarcal do “pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”, como disse Paulo Prado, vai regredindo.
Esse dado é uma pedra no sapato de Jair Bolsonaro. Seu governo age não só contra a Constituição, mas contra a demografia. Aliou-se a Arábia Saudita e Bahrein e excluiu o termo "gênero" de textos oficiais. Seu ministro desqualifica homossexuais como "coisa abstrata".
Ministério dos Direitos Humanos retirou direitos LGBTs da lista de suas prioridades. A Ancine e outros mecanismos estatais de subvenção da cultura fazem filtro de "bons costumes" com a mira, sobretudo, em temas LGBT. Tudo em nome da "família", um mandato que o "povo" lhes teria outorgado nas eleições. 
A distorção ardilosa do conceito de democracia tem sido método da retomada autoritária no mundo. Herbert Hart, filósofo liberal do séc. 20, diante da tentativa de o governo britânico regular a sexualidade, lembrava que "há muitas coisas que nem um governo democrático pode fazer". 
Hart resumiu assim o "populismo moral", essa trapaça anti-liberal que o bolsonarismo tenta nos aplicar: "a visão de que a maioria tem o direito moral de ditar como todos devem viver é um mal-entendido da democracia que ainda ameaça a liberdade individual".
A única maneira de honrar a família, a moral e os bons costumes, em sua versão constitucional, é reagir à investida autoritária. A outra versão ataca sua família, certamente sua liberdade. Enquanto isso, Bolsonaro poderia se preocupar com sua própria família, onde maus costumes não faltam. Não é moralismo, só constatação jurídica. ​
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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