Veja você,
eu me transformei naquele sujeito a quem você diz: “feliz natal”,
e eu respondo: “vai querer esse resto de batata frita?”
eu me transformei naquele sujeito a quem você diz: “feliz natal”,
e eu respondo: “vai querer esse resto de batata frita?”
Eu fui criado no protestantismo.
Aos 9 anos, no consultório do Dr. Guiseppe, cardiologista que receitava Sustrate pra minha mãe, uma senhora na sala de espera soltou: “ah, a senhora é protestante, não é?"
Aos 9 anos, no consultório do Dr. Guiseppe, cardiologista que receitava Sustrate pra minha mãe, uma senhora na sala de espera soltou: “ah, a senhora é protestante, não é?"
Olhei pra cara dessa senhora que me parecia a Carmen Lúcia e
disse: “oi? A senhora disse o quê?”
Nove anos. Todo empombado. Falcon na mão.
-Protestante? Eu sou da igreja. Eu tô errado? Mãe, essa
mulher tá me chamando de protestante.
Minha mãe teve que me segurar. A Carmen Lúcia Cardíaca
sentiu que, problematizando daquele jeito, ia dar merda pra mim um dia.
Deu.
Mulher de visão.
Mas é sobre minha indiferença com o Natal.
Veja bem, não nasci ateu. Nasci dentro do protestantismo. Cresci nisso. Morando
em Portugal, já pelo segundo ano, pude ver o que nós, no Brasil, fazemos nesta
data, e é sobre tudo, menos sobre cultura brasileira. O Natal é uma tradição
europeia. Ele nem era celebrado pelos primeiros seguidores de Jesus. Na
verdade, nem a família de Jesus comemorava o aniversário dele. O juiz Silvio
Capanema, doidão de vinho, celebrando o espetáculo de Natal em Gramado, uma
festa mais europeia que um monte de suíço junto usando Crocs.
E nem era pra comemorar. Uma família pobre. Maria,
provavelmente excluída da sociedade, provavelmente violada, ficou grávida, foi
assumida por um homem já idoso. Negros, trabalhadores, pobres, moradores de
alguma periferia na Judéia ocupada pelas Forças de Pacificação de César. Um
lugar extremamente pobre, no meio do nada, com policiais romanos matando e
crucificando centenas de pessoas por mês, muitos, judeus que queriam ser livres
de Roma.
Jesus nasce
numa bacia de madeira onde comiam os bois, as ovelhas e os porcos. Tinham
porcos na Judéia. Judeus não comiam, mas os romanos sim. Dos 2.000 porcos
de Marcos 5,13 não vieram de Chapecó. Eram de Gadara, em Decápolis, papo
de 15 horas de caminhada de Belém. Jesus nasce no lugar onde os bichos comiam.
E esse lugar não tinha cheiro de Alfazema de Gleid, aquele que a gente prende
em cima do vaso sanitário.
Cheirava a merda, a suor, a placenta de Maria espalhada pelo
chão, o sangue nas roupas. Os bichos em volta. Esse Jesus cresce na profissão
do pai, se rebela contra Roma, e prega a emancipação do povo pobre, através de
uma utopia que ele se apropria da filiação divina e a partilha com todos.
Putas, ladrões, todos os excluídos, eram por ele batizados como filhos e filhas
de Deus.
Jesus pregou contra o fim do domínio político de Roma,
contra o poder econômico, contra o poder religioso, contra os privilégios
patriarcais, Jesus foi morto porque ele era insuportável para aquela sociedade.
Era muita verdade para uma sociedade tão fechada.
Pilatos pergunta pra Jesus, antes de executá-lo, no alto de
um morro chamado Morro da Caveira, na frente da mãe: “O que é a verdade?” Um
político, bem articulado, ter a coragem de perguntar a este homem negro o que é
a verdade, é algo a ser considerado. Pilatos mandou Jesus pra morte, mas o
próprio Pilatos se suicidou, anos depois. Um homem atormentado, porque sabia,
no fundo, que a verdade não cabia na sociedade onde ele era governador imposto
por uma ditadura.
Nós fantasiamos o Natal. Ele não tem nada de feliz. Nem em
dezembro Jesus nasceu. Isso tudo é misticismo e sincretismo católico-romano do
terceiro século. A Igreja
Católica nasce de um acordo com o Imperador. Teocracia não é invenção
da Igreja
Evangélica. A Igreja Evangélica é um upgrade das cruzadas católicas. Jesus
hoje seria morto pelos evangélicos. Na verdade, é. O evangelho é sobre os
pobres. Para os pobres. Com os pobres.
No Brasil, morrem milhares de jovens negros no alto dos
morros, pelas mãos do Estado. Jesus nasce e morre no Alemão, morre na frente da
mãe. O Evangelho Segundo a Favela.
Jesus nasceu. Vamo lá, vamo considerar essa coluna
natalina.
Jesus nasceu numa cidade, numa sociedade que não tinha um
lugar pra ele nascer. Nenhum hotel, hostel, AirBnB, casa de amigo, pensão,
nada. José bateu em todas as portas e nada. Jesus nasceu numa sociedade de
portas fechadas pra ele. Uma sociedade de portas fechadas pro outro, pro diferente.
E 2019 anos depois, estamos na mesma.
E se Jesus vem ao mundo numa sociedade com portas fechadas,
não me surpreende que ele tenha que entrar pela Porta dos Fundos, a única que
se abre pra ele.
Você está hoje aí, nessa data, celebrando o vazio.
Vai querer esse resto de batata frita?
Anderson França
É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e
evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor
social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.
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