Ao longo desta semana, como em todas as semanas anteriores,
o governo pôs no ar o seu show de mentiras escalafobéticas para, de novo,
sucatear o estatuto da verdade, blasfemar contra a História, destruir o bom
senso, promover a ignorância, banalizar o desrespeito aos fatos e desacreditar
a imprensa. O roteiro é sempre igual. Na superfície, no jogo das aparências,
entram em cena as mentiras canastronas, meio carnavalescas, que servem de
factoides para bagunçar o debate público. Aí, as inverdades parecem meros
acessos de loucura inconsequente e ridícula, mas são mais do que isso: são uma
cortina de fumaça para uma operação subterrânea de minar as bases da cultura
democrática, que já está muito debilitada no Brasil.
Nas profundas, no esgoto do bolsonarismo, o que existe é uma
densa e betuminosa mentira essencial que instila o ódio contra todos os que
podem verificar a verdade dos fatos, sejam os cientistas que detectam incêndio
na floresta, sejam os professores que, dentro das universidades, ousam pensar
criticamente, sejam os jornalistas, principalmente os jornalistas, cuja
profissão consiste em investigar os acontecimentos e desmontar as mentiras
oficiais.
O autoritarismo que se vai estruturando entre nós pode ser
definido como o império da mentira e toda semana, uma depois da outra, temos as
provas desse fato atroz e trucidante. Desta vez o protagonista da velha e
repetida encenação, o mestre de cerimônias do show horripilante de mentiras,
foi o novo presidente da Funarte, o maestro Dante Mantovani. Na superfície
barulhenta, ele enunciou as mentiras canastronas. Nos subterrâneos da
propaganda, pôs em marcha a mentira essencial, declarando uma vez mais a guerra
de extermínio contra os verificadores da verdade factual.
Há dois ou três dias os brasileiros ficaram sabendo que
Mantovani costuma declarar estultices em suas redes sociais. Exemplo: “O rock
ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto”. O que pode
haver de mais destrambelhado? Ao mesmo tempo, o que pode haver de mais afinado
com o estilo bolsonarista de bater boca? A sanha moralista é tão desmesurada
que a gente tem a sensação de que, na cabeça do presidente da Funarte, os
efeitos satânicos do rock atravessam o passado e o futuro, exatamente como o
demo que o faz arregalar os olhos. O sujeito parece crer que, já na era de
Hamurabi, todas as técnicas de interrupção da gravidez foram projetadas por
essa gente cabeluda que começou a tanger a guitarra elétrica somente em meados
do século 20.
Ainda no capítulo das alucinações lisérgico-reacionárias,
dessas que o governo põe em circulação para desorientar o público e os
pauteiros dos jornais, o maestro profissional repaginado em ordenador de
despesas deu de confundir Lennon & McCartney com Lenin & Marx e
assegurou que “na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o
capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.” Lucy, in the sky,
manda lembranças.
Mas, atenção, esse tipo de psicodélica macabra que explode
na superfície é apenas metade da invencionice sistemática operada pelo
bolsonarismo. A outra metade, menos espalhafatosa, é mais insidiosa. A outra
metade se dissemina pelos porões imaginários dos ativistas que morrem de
saudade da ditadura e toma por alvo não as bandas de heavy metal ou as canções
melosas dos garotos de Liverpool, mas os institutos democráticos incumbidos de
apurar os fatos, como os cientistas do Inpe e os repórteres dos jornais
independentes. Por baixo das mentiras canastronas da superfície alastra-se a
mentira essencial e betuminosa do poder, escalada para revogar a História e
tirar do horizonte qualquer forma de registro da realidade. Aí está a vertente
mais ameaçadora pela qual o governo golpeia a sociedade.
Mantovani espelha-se diligentemente em seus superiores, que
já proclamaram que o nazismo era de esquerda, e afirma que o fascismo também é
de esquerda. Para quê? Para reescrever a História, invertendo seus sinais.
Quanto apregoa que as fake news não passam de uma invenção dos globalistas,
interessados em ampliar o poder da imprensa no mundo inteiro, quer achincalhar
os jornalistas profissionais. E isso funciona. De tanto insistir no ponto, os
bolsonaristas estão conseguindo enfraquecer os jornais.
O poder que se instalou na Esplanada sabe que seu sucesso
depende do fracasso da verdade factual. É um poder viciado nessa droga pesada
chamada mentira. Seu veneno mais letal não é a intolerância, não é o seu jeito
miliciano de ser, não é a incompetência crônica no trato com a política. O seu
pior veneno é sua mentira essencial, que prescreve censura e violência para
resolver os problemas da democracia. O presidente da República, em pessoa, já
vem ensaiando investidas cada vez mais concretas contra a liberdade de
expressão. E não vai parar por aí. Vai aumentar a dose. Para ele, é questão de
vida ou morte. Se a mentira vencer, ele fica. Se sua máscara cair, ele cai
junto, pois sua identidade se transfundiu em sua máscara.
Enganam-se os liberais de boa vontade que dizem não haver
lógica nos discursos alucinatórios das autoridades federais, obcecadas pelas
drogas, pelo sexo, pelo rock abortivo e pelos comunistas infiltrados no show
business. Há mais do que delírio e despreparo nos despautérios do governo: há a
coerência da mentira e da fraude. Isso quer dizer que existe, sim, um nexo de
consequência entre a teoria do rock abortogênico e a causa maior de acabar com
a imprensa.
O governo pode bater cabeça feito um lobisomem rolando a
ribanceira, mas sabe muito bem o que quer destroçar. Sabe que um país onde
vigora a liberdade de imprensa está mais protegido contra a mentira. Sabe que
não basta levar um ou outro jornal à falência. Sabe que precisa ter a seus pés
um povo incapaz de buscar a diferença entre o que é verdade e o que é mentira.
É nessa trilha que o governo avança.
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