A discussão sobre a crise da democracia representativa
prossegue intensa pelo mundo todo, mas, salvo melhor juízo, acrescentando mais
calor do que luz ao que sabemos desde muitas décadas atrás. Certas falácias e
uma enorme lacuna podem ser facilmente identificadas.
A primeira é a suposição de que esse complexo mecanismo
institucional a que chamamos democracia se pode romper em consequência de
causas indiferenciadas, genéricas, sem ações políticas específicas que conduzam
a tal resultado. No momento, o fato mais invocado como causa de uma possível quebra
(breakdown) da democracia representativa é o descrédito generalizado das
instituições que sustentam tal regime. Trata-se, efetivamente, de um fato. Por
toda parte, uma grande parcela, talvez a maioria dos cidadãos, nutre clara
hostilidade em relação aos políticos e partidos.
Mas, por si só, esse sentimento negativo não tem como
provocar uma quebra constitucional. Não tem como provocá-la nem mesmo
associado, como em geral acontece, a uma crise econômica, seja esta real
(recessão, desemprego) ou imaginária (frustração de expectativas demasiado
altas). Para que a quebra aconteça é preciso um Mussolini que prometa salvar
rapidamente o país da “decadência”, movimentos ideológicos ou populistas
atacando fisicamente as instituições e provocando reações policiais ou
militares, formando uma espiral que acaba fugindo a qualquer controle; ou, no
limite, um golpe, putsch ou revolução armada, como foi na Rússia durante a 1.ª
Guerra, na Espanha durante os anos 30 do século passado ou na Venezuela, com a
ascensão do chavismo nos anos 90. Mesmo em tais casos, a ruptura dificilmente
se concretizará se lideranças políticas importantes se mantiverem firmes na
defesa das instituições.
Outra lacuna digna de nota é que os profetas do apocalipse
democrático raramente se dão ao trabalho de indicar que outro modelo
institucional substituiria a democracia representativa caso esta chegue de fato
ao colapso. No lugar dessa flagrante lacuna, o que mais encontramos é uma
antiga estultice, a de que a democracia só pode florescer e se consolidar em
determinado país quando ele houver atingido um nível elevado de renda,
escolaridade e bem-estar. Só em países superdesenvolvidos, para dizê-lo de
forma concisa. Ora, a realidade doutrinária e histórica indica precisamente o
oposto. O mecanismo democrático foi inventado para equacionar com o mínimo
possível de violência os conflitos (de interesse econômico, ideológicos,
religiosos, raciais, etc.) que soem existir em toda sociedade. Equacionar tais
conflitos aceitando a legitimidade dos adversários que se disponham a disputar
o poder respeitando as regras do jogo, a primeira das quais é o processo
eleitoral: eleições periódicas limpas e livres.
Mencionei duas falácias – discutidas acima – e uma enorme
lacuna, que passo agora a considerar. Refiro-me aqui à China. Decifrar a
esfinge chinesa, eis o osso duro de roer. O atual modelo chinês combina, como
sabemos, um capitalismo selvagem, vale dizer, uma economia assaz desregulada,
com um férreo controle totalitário da sociedade pelo Partido Comunista. O peso
que terá na ordem econômica mundial por certo nos forçará a manter relações
estreitas com ela.
Anotemos, de início, que a China não registra um só dia de
democracia em seus 5 mil anos de História. Num plano especulativo, não creio
que o país possa atingir um elevado nível de renda, diversificação social e
abertura ao exterior sem afrouxar em alguma medida o rigor dos controles que lá
prevalecem. Até o momento não há o menor indício de que um processo desse tipo
esteja em curso.
Bem ao contrário. Para qualquer outro país do mundo, uma
população de 1 bilhão e 300 milhões seria com certeza um problemaço, não um
tremendo recurso de poder na esfera internacional. Mas a China compreendeu que
aquela enorme massa de gente, combinada com seu rápido avanço econômico e com o
férreo controle que sobre ela exerce o Partido Comunista, poderia ser usada
como uma arma poderosa. Arma que ela de fato utiliza, seu poder de mercado, sem
a menor vacilação. Utiliza-o não apenas para sustentar uma posição de força em
suas negociações com outras potências, mas para projetar sobre elas, até sobre
os Estados Unidos, sua concepção totalitária de poder.
Os estúdios de Hollywood, por exemplo, estão aprendendo que
têm de aceitar a censura se quiserem ter acesso ao vasto mercado chinês. Mesmo
na esfera esportiva, uma das associações americanas de basquete teve de se
desculpar pelo fato de um atleta (repito: um atleta, não a associação como tal)
ter manifestado apoio aos manifestantes de Hong Kong. Ou a associação se
retratava ou perdia seus direitos de transmissão de jogos para os aficionados
chineses.
Outro caso deveras impressionante é o de 40 empresas aéreas
internacionais, relatado pelo jornalista Jonah Blank na revista The Atlantic. O
governo chinês exigiu que apagassem de seus websites e materiais publicitários
referências a Taiwan como um “país”. Para a China, como se sabe, Taiwan é um
“território rebelde”. Todas obedeceram, claro.
A questão, portanto, está muito longe de ser o hipotético
advento de uma democracia na China. Por enquanto, o que estamos vendo são
intervenções específicas e decisivas da China limitando a liberdade de
expressão nas democracias ocidentais.
Apontar causas específicas de possíveis rompimentos das
regras constitucionais da democracia, indicar que outro modelo institucional as
substituiria se um dia o limite da ruptura for de fato atingido e como lidar
com uma superpotência avessa à democracia no plano doméstico e disposta a
restringir a liberdade de expressão no plano internacional, eis aí três
requisitos que me parecem indispensáveis no presente debate.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias
Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘De onde, para
onde – Memórias” (Editora Global, 2018).
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