O sujeito soube que a poeta americana Elizabeth Bishop seria
homenageada pela Flip do ano que vem e temeu pelo início de mais um debate
indigente. Festejar uma lésbica e alcoólatra seria um prato feito para o
ministro Abraham Weintraub. Eis que o pedagogo bolsonarista ficou calado e a
escolha de Elizabeth Bishop foi condenada com outras críticas selvagens. Como
um bolsonarismo de sinal trocado, essa intransigência malversa a história,
tentando mudar o resultado de um jogo no replay.
As críticas à escolha de Bishop evitaram a discussão de sua
poesia e centraram-se em três pontos. Ela viveu no Brasil por mais de dez anos,
mas olhava para a terra de forma condescendente, menosprezando seus literatos
(falou mal de Manuel Bandeira). No pior dos pecados, em 1964 apoiou a deposição
do presidente João Goulart.
Bishop não olhou para o Brasil como o francês Claude
Lévi-Strauss, que passou por aqui nos anos 1930. Ela era poeta e ele,
antropólogo. As opiniões de Bishop foram expostas em cartas, enquanto
Lévi-Strauss ponderou suas ideias no livro “Tristes Trópicos”. Ela disse que
toda a poesia latino-americana cabia num poema de Dylan Thomas. Exagerou, mas
Lévi-Strauss traçou um retrato fiel e devastador da elite cultural brasileira.
Livrou Euclides da Cunha e Heitor Villa-Lobos.
O caroço das críticas a Elizabeth Bishop esteve no seu apoio
à deposição de Goulart: “Foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva
—tudo terminado em menos de 48 horas.” Bonita não foi, mas naqueles dois dias
morreram sete brasileiros. (Neste ano a polícia do Rio matou 1.546 pessoas.)
Bishop era uma americana elitista e liberal. No Brasil, era
também amiga de Carlos Lacerda. Em 1964, ele governava o Rio e era um feroz
adversário de Goulart. Lacerda foi o melhor administrador que a cidade teve,
nada a ver com o político acuado e decadente de seus últimos anos. A poeta era
companheira de Lota de Macedo Soares, amiga do “Corvo” e criadora da maravilha
do aterro do Flamengo.
Em 1963, liberais como Arthur Schlesinger Jr. e Richard
Goodwin, assessores do presidente John Kennedy, defendiam a alternativa de um
golpe contra Goulart. Um ano depois, quando ele foi derrubado, The New York
Times disse, num editorial, que não lamentava a queda de um governante “tão
incompetente e irresponsável”. (Muito provavelmente essa peça foi escrita por
Herbert Matthews, o jornalista que ajudou a criar o mito do guerrilheiro Fidel
Castro.)
Em Pindorama também havia liberais contra Jango. Para ficar
num só exemplo, o advogado Sobral Pinto, que tanto fez pela liberdade do
brasileiros, disse, em janeiro de 1964, que “começou ontem, sob proteção
abusiva e violenta de tropas do Exército (…) a revolução bolchevique brasileira
(…) Não existe mais, nesta hora, no país, nem lei nem autoridade pública”. (Ele
condenava a proteção dada pelos militares a estudantes que haviam invadido uma
faculdade, hostilizando Lacerda.)
A onda de intransigência mistificadora envenena até festas.
Em 2006 a Flip homenageou Jorge Amado, ganhador do Prêmio Stálin em 1951, com o
Guia Genial dos Povos ainda vivo. Em 2007 festejou-se Nelson Rodrigues, o
supremo panfletário da ditadura. Nos dois casos esses aspectos biográficos foram
desprezados, celebrando-se a boa literatura.
Elizabeth Bishop foi criticada porque menosprezou a poesia
de Manuel Bandeira, que em abril de 1964 almoçou com o presidente Castello
Branco, a quem admirava. A mesma Bishop elogiava João Cabral de Melo Neto como
pessoa e como poeta. Logo João Cabral, que havia sido comunista.
A própria Bishop ensinou: “Nunca vi motivo para discussão
sobre o nada”.
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