Uma medida do AI-5 foi pôr censores nos jornais. Não havia
internet. Como fariam hoje para censurar a rede?
No dia em que o Flamengo se tornou campeão da Libertadores,
cruzei no avião com um homem vestido com a camisa do time. Apenas nos olhamos,
mas nos sentíamos unidos pela mesma tensão e esperança. Naquele momento, senti
uma estranha saudade do Brasil. A seleção brasileira já não empolga como antes;
o lugar foi momentaneamente ocupado pelo Flamengo.
Mas o futebol não era meu objeto de saudade, mas sim a
política. Vim me perguntando na viagem de Natal para o Rio como era difícil
encontrar essa sensação de unidade nacional, sobretudo em tempo de paz.
Quando digo unidade, não quero dizer unanimidade. Mas algo
que congregue as pessoas para além de suas escolhas singulares. A última vez
que senti isso foi no movimento pelas Diretas. A partir daí, a sensação foi
escapando aos poucos.
É um pouco ingênuo acreditar nessa possibilidade. A política
americana em alguns momentos conseguiu unificar os dois grandes partidos
pontualmente, em temas bem definidos. Hoje, com Trump, esse sentimento deve
estar se esvaindo também lá. Digo também lá porque aí as perspectivas são de
confronto, com os atores se pintando para a guerra.
O Chile é uma espécie de arma que os contendores escolheram
para o seu duelo. De um lado, a esquerda pedindo manifestações como a chilena;
de outro, o governo de extrema direita acenando com o AI-5 e preparando-se para
uma repressão sem limites, camuflada sob um nome bastante complicado:
excludente de ilicitude, cuja tradução real é liberar a porrada.
Dentro desse quadro radical, uma tênue centelha do passado
comum reaparece nas reações que surgem sempre que se fala de novo no AI-5. Elas
têm sido rápidas e bastante amplas no mundo relativamente restrito dos que se
interessam por política. Mostram não só um vigor democrático, mas apontam para
uma unidade nacional contra estados de exceção.
Tenho várias razões pessoais para não acreditar num novo
AI-5. A principal delas é ser velho o suficiente para conhecer as condições
daquela época e as que existem hoje.
Uma das medidas do AI-5 foi introduzir pequenos grupos de
censores dentro dos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar
a rede? Não me refiro apenas às dificuldades técnicas, mas aos gigantescos
transtornos culturais e econômicos.
Naquele tempo, vivíamos numa Guerra Fria simbolizada pelo
Muro de Berlim. Embora o governo ainda respire os ares da Guerra Fria, e o muro
não tenha caído para uma parcela da esquerda, a verdade é que os tempos são
outros.
O movimento pelas Diretas, com seu potencial unificador, foi
basicamente contra um resquício da ditadura. Qualquer novo ato ditatorial,
creio eu, poderá reviver seu espírito, uma vez que, apesar de todas as
divergências, estamos de acordo em preservar o sistema democrático.
É possível olhar o que se passou no Chile de forma
diferente: estudar o que aconteceu e buscar soluções menos dramáticas. O número
de pessoas que ficaram cegas parcial ou totalmente supera duas centenas.
O ultraliberalismo tende a trazer enormes dificuldades para
a vida das pessoas. Sem sensibilidade política, não há chances de racionalizar
a economia. Da mesma forma, os governos de esquerda tendem a quebrar o país com
a ilusão de que dinheiro cai do céu.
Uma ampla frente contra o fantasma da ditadura está no
horizonte imediato, pois ela se manifesta toda vez que falam de AI-5. Mas ela
ainda não é articulada o bastante para intervir na base da instabilidade. Propor
uma agenda social aos liberais e uma racionalização econômica à esquerda.
Não deixa de ser estranho falar sobre AI-5 nesse começo de
dezembro. Não é que me sinta aprisionado na máquina do tempo. Mas era como se
conversasse com sua tela, com pessoas que ainda estão com a cabeça em 13 de
dezembro de 1968.
Para não ficar triste, posso entender isso como uma
maravilha da tecnologia estar voltando atrás para dizer: não pensem nisso,
vocês vão durar pouco tempo. E os adversários não serão mais os gatos pingados
do passado, mas multidões enérgicas como a torcida do Flamengo.
Artigo publicado no jornal O Globo em 02/12/2019
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