Estamos atravessando tempos bicudos. Não só por causa do
coronavírus, mas também porque há um vazio político no mundo. Quando não, há
uma histeria direitista sem que se veja o “outro lado” do espectro. Ou sumiu,
ou os tempos são outros e mesmo a antiga divisão, que persiste, entre esquerda
e direita – com suas variantes ao redor de um centro abstrato – não dá mais
conta das reais adversidades do mundo contemporâneo: aquecimento global,
substituição de mão de obra por “máquinas inteligentes” e agora, como se fossem
poucas as tormentas, as pandemias.
Estou, como bom cidadão – e idoso -, fazendo esforço para me
isolar. Confesso que ando cansado de ouvir tanta gente, a toda hora, falando de
doenças e mortes. Não me refiro aos especialistas, como o ministro da Saúde,
que precisam mesmo falar. Ele tem sido competente, claro e sensível às
necessidades do momento. Certos presidentes melhor que não falem, pois falam e
“desfalam” ao sabor das circunstâncias, despreparados para entender o presente
e, mais ainda, para projetar o futuro.
Sei que é difícil. Na última sexta-feira, assisti no Zoom
(ah, quantos inventos de interlocução sem a presença das pessoas foram criados
no mundo e como são úteis…) a uma discussão, organizada pela Fundação FHC,
entre o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru e um especialista
americano em economia chinesa, Arthur Kroeber.
Além dos impactos econômicos da pandemia, discutiram o que
poderá acontecer com a geopolítica mundial depois da crise. Kroeber afirmou que
a crise reforça a posição dos setores mais duros da sociedade e do governo
americano, que veem na China uma ameaça, um vírus a ser contido. O embaixador
Caramuru acredita que, se essa visão prevalecer nos Estados Unidos, crescerá a
influência chinesa no mundo. Para ele, só os Estados Unidos veem a China como
adversária implacável da paz e da prosperidade. Os demais países – nós
incluídos – deveriam aproveitar os espaços econômicos no futuro para aumentar
nossas exportações e induzir os chineses a fazerem mais investimentos aqui.
É certo que é preciso pensar no depois. Os países e seus
povos não vão acabar. A crise virótica, por mais difícil e custosa que seja em
termos de vidas e de recursos, um dia vai passar. Mas, e antes disso, durante a
pandemia? O óbvio já disse acima e a maioria das pessoas sabe e compartilha:
nada, se possível, de ir à rua ou juntar-se com outras pessoas. Estamos todos
(os que podemos…) como prisioneiros, não por ordem da Justiça ou pelo arbítrio
dos poderosos, mas para tentarmos nos salvar e salvar os outros.
Aproveitemos para pensar no estilo de vida que vivemos. A
solidariedade, no cotidiano da maioria das pessoas, transformou-se em mera
frase, sem correspondência em atos. Por que não aproveitar a prisão voluntária
para pensarmos um pouco mais sobre nós mesmos, nossa família, os amigos, os
vizinhos e a sociedade mais ampla?
Sei que para alguns a adaptação em casa é mais fácil. Eu
próprio aproveito para escrever e ler. Mas, e as pessoas que vivem nas favelas
ou nas periferias sem verde algum, apinhadas sob um mesmo teto? E as que
perderão o emprego como consequência indireta do coronavírus? Portanto, ao
mesmo tempo que mergulharmos em nossa consciência para ver se ainda somos
humanos, é hora de pensar também em como transformar em gesto a intenção de ser
solidário. Não faltam boas iniciativas da sociedade civil para angariar e
canalizar doações.
Sem diminuir a importância dessas iniciativas, a ação
decisiva é dos governos. Os economistas não sabem qual será a profundidade da
crise e em quanto tempo virá a recuperação. Mas num ponto a maioria concorda:
às favas (por ora!) a ortodoxia e os ajustes fiscais. Voltamos aos tempos de
Keynes e, quem sabe, os mais apressados deixarão de jogar os
“social-democratas” na lata de lixo da História.
Os governos, e não só o daqui, começam a perceber que é
melhor gastar já e salvar vidas do que manter a higidez fiscal e produzir
cadáveres e depressão econômica. A dívida pública vai aumentar. Depois se verá
como pagá-la. Este se é dúbio: em geral a maior parte da conta vai para o
conjunto da população, e não para os que mais podem. Terá de haver mobilização
política para que desta vez seja diferente.
Que o Tesouro se abra (e se já estiver vazio, que se
endivide ainda mais). Com um porém: que os governos usem bem o dinheiro e não
transformem gastos extraordinários em gastos permanentes. Melhor haver um
“orçamento de guerra” do que criar bazucas permanentes contra o Tesouro.
É disto que se trata: reforçar estruturalmente a saúde pública
e a ciência básica, fazer gastos extraordinários para garantir a sobrevivência
das pessoas e das empresas mais vulneráveis e, mais à frente, distribuir com
equidade a carga de impostos para reduzir o déficit e a dívida pública, que vão
crescer inevitavelmente.
*Sociólogo, foi presidente da República


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