“Acabou, porra”. Foi assim, com sua polidez costumeira, que
o sr. Jair Bolsonaro reagiu ao fato de seus aliados estarem em investigação por crimes contra a República. No
mesmo dia, um de seus filhos (a formulação é sintomática, o referido é
conhecido pela população por ser “filho de…”), falou abertamente sobre o golpe
de 1964 como pretensa resposta ao “clamor popular” na chamada guerra entre
poderes.
Mas se for para falar em “clamor popular”, melhor começar
por responder porque a maioria das brasileiras e dos brasileiros está hoje sem
voz. Segundo a última pesquisa Datafolha, 43% das brasileiras e dos
brasileiros rejeitam claramente o Governo Federal, avaliando-o como
ruim ou péssimo. Nunca na história recente deste país um presidente chegou a um
ano e meio de seu mandato com tamanha rejeição. Isso em uma situação na qual
todas as peças estavam a seu favor. Pois uma situação de pandemia equivale (ao
menos do ponto de vista das identificações políticas) a uma situação de guerra e, nestas circunstâncias, a
população tende a se unir em torno de seu Governo para lutar contra algo que a
ameaça como um todo.
O sr. Bolsonaro poderia ter chamado todos a baixarem as armas, conclamado
uma união nacional pela defesa da vida. Ele poderia ter dito que passaríamos
todos por momentos muito difíceis na economia, mas que o Governo iria mobilizar
seus recursos para fornecer salários para as pessoas ficarem em casa por três
meses. Ele poderia fazer um grande acordo para impedir que as empresas
demitissem e para obrigar as grandes fortunas e o sistema financeiro a repartir
seus rendimentos estratosféricos em um momento de implosão social. Se ele
fizesse isto, agora sua aprovação seria recorde. Mas, para isso, Bolsonaro não
poderia ser Bolsonaro. Para isso, o Brasil não poderia ser o Brasil. E, para isso, sua elite suicida e
escravocrata não poderia ser sua elite suicida e escravocrata.
Ao contrário, e a conta dessa responsabilidade vai para
todos os empresários que o apoiam, o Governo preferiu abrir caminho para se transformar no novo epicentro mundial da covid-19. Neste
exato momento, morrem mais brasileiras e brasileiros desta doença do
que qualquer outra nacionalidade no mundo. Isto levando em conta apenas os
números oficiais, com suas subnotificações evidentes e limitações para testagem
da população. Esta é a verdadeira face da “responsabilidade para com o país”, do “cuidado da nação” e
de outras afirmações com as quais somos bombardeados diariamente. Com uma
responsabilidade destas, país algum precisa de inimigos.
Mas um observador da vida nacional poderia se perguntar
porque essa maioria que não quer mais o sr. Bolsonaro e sua naturalização
genocida das mortes de brasileiras e brasileiros não é ouvida. As Forças
Armadas, responsável maior pelo caos no qual estamos, são exímias em
fazer ouvir a voz de uma minoria aguerrida e fascista, enquanto procura de
todas as formas calar a verdadeira maioria. Essa maioria agora quer voz.
Ela foi pega em uma chantagem perversa do Governo. Sendo o
único setor que realmente se preocupa com a vida das brasileiras e dos
brasileiros mais vulneráveis, ela ficou em casa, respeitou a quarentena,
resumiu sua indignação a panelaços, enquanto via a horda minoritária sair às
ruas para zombar das mortes e exigir políticas irresponsáveis que destruiriam
de vez o país. Pois uma política madura e responsável de isolamento poderia ter
permitido ao país debelar a pandemia em três meses. Agora, seremos a referência mundial em catástrofe, seremos o país
contra o qual o mundo levantará um cordão sanitário e, ironia macabra, isso sim
irá “destruir a economia”.
Essa maioria teve que ouvir passiva o sr. Bolsonaro blefar
em “armar a população” sendo que ele sabe muito bem o que acontecerá se ele
realmente armar a população, ao invés de simplesmente armar suas milícias
minoritárias. Se ele quer fazer isto, que comece por dar armas aos povos indígenas cujo ocupante atual do ministério da
educação despreza a existência ou à classe trabalhadora espoliada por sua
política econômica exímia em dar presentes a quem diz que 5.000 ou 7.000 mortes
não são nada diante do prejuízo que ele terá por não poder vender hambúrgueres.
Agora, essa maioria vê o sr. Bolsonaro procurar realizar uma
operação digna de 1984, de George Orwell. Nesse romance, Orwell
lembra, entre outras coisas, que há uma mutação necessária na língua para que
um regime autoritário se imponha. Algo parecido tem ocorrido entre nós. Tal
como na Oceania de Orwell, somos diariamente submetidos ao exercício de
reescritura do sentido de termos que pareciam elementares. No país do
bolsonarismo, ignorância é força, liberdade é genocídio.
Pois notem como o discurso sobre a “liberdade” emana tão
facilmente da boca daqueles que fazem de tudo para cala-la, que amam
torturadores e louvam ditaduras, como a que conhecemos durante vinte anos. Há
dias, o sr. Bolsonaro, em uma de suas lives, afirmou: “muito maior
que a própria vida, é nossa liberdade”. Bem, deixando de lado a contradição
elementar de que uma liberdade sem vida não é liberdade alguma, há algo de
interessante nesse tipo de afirmação. Ela ecoa o discurso oficial de que as
políticas de restrição a circulação e atividades desenvolvidas para o combate
contra a pandemia seriam um “atentado a liberdade”.
Tal discurso ressoa um certo tipo de concepção de liberdade
que parte do dogma dos limites sagrados dos indivíduos. Vimos algo parecido
quando manifestantes norte-americanos saíram às ruas com um
cartaz onde se via uma máscara dentro de um sinal de proibido e se lia “meu
corpo, minhas regras”. O mesmo raciocínio serviu de base para manifestantes
alemães exigirem o “direito de se infectarem”.
A lógica é clara e não há como negar certa consistência.
Sendo “liberdade” algo que alguns compreendem como a propriedade que tenho
sobre mim mesmo, ninguém poderia me obrigar a portar uma máscara médica, a ficar em casa, a cuidar de meu
corpo, a não ser que ele tenha meu consentimento para isto. Afinal, como disse
o sr. Bolsonaro em outra de suas ocasiões de reflexão filosófica: “Se eu me
contaminei, é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso”.
Ao menos, tudo isto serve para mostrar o tipo de
monstruosidade social legitimada pelo discurso que reduz a liberdade à
propriedade de si. Desde que aceitamos essa premissa, as consequências são o
discurso do ocupante atual da presidência da República. E de nada adianta
afirmar coisas como: “mas o exercício da propriedade que tenho de mim mesmo
deve estar submetida a respeito pelo risco a vida do outro”. Pois eles poderão
sempre perguntar ( e, novamente, com certa consistência): mas quem decide quais
são os “riscos relevantes” ao outro? Por que devo admitir que o estado ou
cientistas que se colocam como sábios oraculares decidiram o que é “risco
relevante”?
A única maneira realmente consequente é recusar essa
liberdade que se realiza no genocídio. Liberdade não é ser proprietário de mim
mesmo, mas compreender que estou em um sistema de mútua dependência que exige o
reconhecimento da racionalidade de afetos de solidariedade genérica. O corpo
que chamo de meu não é simplesmente meu corpo. Ele também é, entre outras
coisas, um veículo de contágio, ou seja, ele é a sua maneira uma
parte do corpo social e deve também ser tratado como tal. Um afeto dessa
natureza é tudo os que sustentam esse Governo e sua indiferença genocida querem
que não emerja. Porque ele se realiza na igualdade real e em uma mutualidade
que ainda não existe, mas que pode existir.
A maioria brasileira que ainda não tem voz saberá como
rejeitar esse individualismo possessivo que é a verdadeira forma de violência.
Pois o verdadeiro embate é pela construção de uma liberdade real que nunca
aceitará que mais de 28.000 brasileiras e brasileiros mortos é uma
fatalidade natural, como a queda das folhas no outono.
Para finalizar, não podemos mais aceitar as chantagens que
nos foram impostas. Nossas ações devem ser mais efetivas a partir de agora.
Redes de boicotes a empresas que sustentam essa política da morte,
manifestações de rua pelo impeachment do Governo que respeitem exigências de
segurança sanitária (como vimos em Israel). Pois a queda desse Governo não será
apenas a queda desse governo. Será dar a maioria sua verdadeira força de recusa
e abrir o caminho para que ela possa começar a criar.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
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