Nada como os fatos. No devido tempo deram razão à percepção
de que eram infundados os temores sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro
golpear a democracia ao molde venezuelano, a fim de governar a plenos e
absolutos poderes. Em um ano e meio, de maneira mais acentuada nos últimos
quatro meses, o presidente, filhos e súditos passaram de intimidadores a
intimidados.
Sinal eloquente do retraimento típico de gente acossada
foram a suspensão do espetáculo, em duas sessões diárias, na porta do Palácio
da Alvorada e a ausência do presidente nas performances dominicais nas
cercanias do Palácio do Planalto logo após a prisão de Fabrício Queiroz.
O presidente & filhos foram acometidos de um súbito
gosto por modos razoáveis, enquanto aqueles ministros ditos ideológicos
perderam a loquacidade. Faz algum tempo que Damares e Araújo já não dão vazão
em público a suas ideias reacionárias. Os ativistas do extremo digital
reduziram drasticamente sua presença nas redes e trataram de apagar vídeos no
YouTube para eliminar rastros e não facilitar a coleta de provas nas
investigações acerca dos patrocínios e da organização de atos atentatórios à
verdade e à Constituição.
Não foi preciso nada além da estrita observância das normas
em vigor e do repúdio social aos abusos por eles mesmos cometidos para que lhes
fosse cortado o fornecimento de oxigênio. Consideram-se injustiçados, vítimas
de perseguição, ignorantes que se mostram a respeito de uma pergunta retórica
que Sigmund Freud registrou na história da psicanálise: “Qual a sua responsabilidade
na desordem da qual se queixa?”. A resposta é de essencial utilidade para uma
correção de rumos.
Bolsonaro pode não estar perto de perder o mandato, mas já
perdeu a condição de abalar Bangu (sem referência outra, só força de expressão)
com a estridência de suas cordas vocais. Dizem que a luz do sol é o melhor
detergente. Aqui a substância responsável por imprimir clareza ao cenário tem
sido o olho e as mãos da lei.
Não são fortes o bastante para impedir o retrocesso
civilizatório cujas bases foram plantadas nos governos do PT com o menosprezo
do então presidente Luiz Inácio da Silva pela educação formal, pelo uso correto
do idioma e pelo respeito à ética na política e com a introdução da dinâmica do
“nós contra eles” na sociedade, e seriamente agravados por Bolsonaro. Mas, se é
real a ocorrência do atraso, é verdadeira também a consolidação dos mecanismos
de contenção a ilegalidades. Vários deles, diga-se, reforçados na era petista.
“Bolsonaro e companhia passaram do papel de intimidadores à
condição de intimidados”
Jair Bolsonaro não contava com o peso dessa engrenagem na
imposição de limites ao exercício do poder. Felizmente é com esse aparato legal
que o país conta para dissipar apressadas e inapropriadas comparações com o
regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Lá, Judiciário, Legislativo e Forças
Armadas foram tomados de assalto como pré-requisito para transformar a
Venezuela numa democracia de fancaria. Aqui, fica a cada dia, a cada fato, a
cada reação mais patente: isso é impossível.
Portanto, que se recolham de um lado esperanças e de outro
temores. Não vai ter golpe. Entre os motivos já explicitados, porque o
candidato a golpista está identificado e queda-se refém dos próprios blefes. A
cada dobra de aposta nesse jogo o presidente perde mais espaço no tabuleiro
onde se posicionam as instituições, a massa crítica de setores organizados e a
maioria da sociedade, conforme atestam as pesquisas de opinião.
O fracasso dos intentos autoritários, contudo, não significa
que esteja tudo bem. Não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto
grandes malefícios ao nosso país. Impôs enormes. Em decorrência do já citado
retrocesso civilizatório tivemos o prejuízo das vidas perdidas por causa da
atitude negacionista em relação à pandemia, a perda de importância no campo
diplomático, os monumentais riscos ao comércio exterior e aos investimentos
devido ao desprezo pela preservação do meio ambiente e à depreciação de
questões relativas a direitos humanos. O Brasil era um, hoje é outro bem pior
aos olhos do mundo, motivo de piadas e lamentações.
Assalta-nos, então, a dúvida: a situação tem remédio ou
remediada está? Nenhuma das duas hipóteses. Para a segunda, que implicaria o
impedimento, ainda não se encontrou um caminho eficaz. Para a primeira,
dependeríamos de uma mudança radical nos atos e no pensamento de Jair
Bolsonaro, num repente transmutado em líder. Resta, portanto, o aguardo de um
milagre.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693
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