Navegar ao sabor do vento significa içar vela e deixar que o
vento nos leve para onde soprar. É abrir mão de comandar o futuro. O Brasil
está navegando ao sabor do vírus. Abrimos
mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja. Talvez
mais lentamente do que poderia, pois não levantamos completamente a vela:
lavamos as mãos, usamos máscaras e fazemos um mínimo de isolamento. Sem dúvida
estamos caminhando em direção à tragédia, mas em câmara lenta, e não temos
planos para retomar o controle. É a consumação da estratégia que chamei em 9 de
maio de imunidade
de rebanho por incompetência.
Ao sabor do vírus a pandemia no Brasil só terminará quando
atingirmos a imunidade de rebanho, o único mecanismo biológico conhecido que
inibe a propagação do vírus sem intervenção humana. Navegar ao sabor do vírus
pode custar a vida de até 1% dos contaminados. A imunidade de rebanho
geralmente ocorre quando 70% a 80% da população suscetível tiver sido
infectada. Talvez ocorra antes, mas chegaremos lá antes de a vacina estar
disponível. Isso é quase uma certeza. Quais são as evidências de que navegamos
ao sabor do vírus? O gráfico abaixo, cortesia do meu amigo Cal, mostra nossa
rota desde a chegada do vírus no Brasil.
No eixo vertical estão os números de novos casos por dia,
por milhão de habitantes, em cada um de quatro países. Os dados diários foram
plotados como uma média móvel de sete dias. O Brasil registra hoje por volta de
150 novos casos, a cada dia, por milhão de habitantes (sem contar as
subnotificações), um número maior que os 90 registrados nos Estados Unidos. No
eixo horizontal estão os dias que se passaram desde que cada país registrou um
caso por milhão de habitantes. Isso ocorreu quando o Brasil registrou 220 novos
casos por dia, os EUA, 330, o Reino Unido, 66, e a Itália, 60.
É fácil observar como a Itália, após um crescimento rápido
do número de casos por dia, impôs um lockdown rigoroso após o dia 30 e tomou
controle do barco. Passados 90 dias, estava com a pandemia sob controle. O
Reino Unido demorou para responder e o lockdown veio mais tarde. Mas desde o
dia 60 conseguiu reduzir o número de novos casos por dia. Os EUA também se
assustaram com o crescimento rápido dos novos casos, implementaram um lockdown
nas principais cidades, conseguiram estabilizar o número de novos casos, mas
quando começaram a tomar pé da situação relaxaram o distanciamento social. Os
resultados da abertura são gritantes, o crescimento rápido do número de novos
casos por dia já está ocorrendo.
O mais impressionante é o barco brasileiro. Medidas brandas
de distanciamento social retardaram o crescimento da pandemia, que cresceu
lenta e livremente por 80 dias. Quando as medidas estavam começando a fazer
efeito, veio o relaxamento do distanciamento social e a pandemia voltou a
crescer mais rapidamente do que antes, totalmente fora de controle.
O pior no Brasil é que simplesmente não temos um plano para
controlar esse crescimento. O exemplo mais claro dessa atitude é o anúncio da
abertura das escolas no Estado de São Paulo. Ele deve ocorrer no início de
setembro caso todas as áreas do Estado estejam com níveis de propagação
classificadas como verde já no início de agosto. O problema é que não foi
anunciado simultaneamente um plano capaz de garantir que o Estado de São Paulo
atinja essa a condição no início de agosto. Sem executar algum plano seguramente
não chegaremos lá, pois São Paulo está batendo todos os dias os recordes de
novos casos por dia e número de mortes por dia. Ou seja, as escolas não abrirão
em setembro se o governo cumprir o que decretou.
Até agora as medidas anunciadas são inócuas para controlar a
pandemia. Oferecer mais leitos de UTI ajuda os pacientes graves, o que é
importante, mas não diminui o número de casos. E esse aumento tem limite, que
eram respiradores, mas de agora em diante serão profissionais da saúde capazes
de atender um número crescente de leitos. Liberar gradativamente as atividades
ao menor sinal de desocupação de leitos vai seguramente na direção oposta do
controle, pois cada liberação significa levantar um pouco mais a vela desse
barco que navega ao sabor do vírus.
E a testagem em massa? Ela tem sido um fracasso em nosso
Estado e em todo o País. Os governos sequer detalham o que significa esse termo
e como ele pode levar ao controle da pandemia. O número de testes de RT-PCT,
que detectam pessoas durante a fase em que estão transmitindo o vírus, e podem
ser usados para isolar pessoas que estão transmitindo a doença, são executados
em número ínfimo. Pululam iniciativas governamentais baseadas em testes
sorológicos, que, sabemos muito bem, somente identificam pessoas que já
passaram pela fase crítica da doença e já contaminaram quem deveriam
contaminar. São inúteis para controlar a doença e uma bênção para o vírus.
Em suma, não existe nenhuma medida em andamento que tenha
alguma chance de reverter o andamento da pandemia nos próximos meses. Nenhuma.
A impressão é que nossos governantes esperam por algum
milagre, alguma intervenção divina que provoque a diminuição do espalhamento da
doença de maneira mágica, sem que eles tenham de executar algum plano que tenha
embasamento científico. Como a fração da população já infectada ainda é baixa,
não existe nada no horizonte que vai conter o crescimento diário do número de
novos casos em 2020. Estamos navegando ao sabor do vírus com a vela a meio
mastro.
*É BIÓLOGO
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