Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do
vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito
tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em
expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas
também porque estamos perdendo a ideia de futuro.
Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em
“novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo,
um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos
de segurança, ordem, estabilidade, rotina.
A verdade é que o futuro está coberto por trevas
obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina.
Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a
imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma
ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se
projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos
pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio
que a esmo, perplexos.
O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A
começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam
novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira
distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.
A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem
empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas,
carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para
valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as
pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas
gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade.
Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias
onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm
dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e
procedimentos.
Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir
que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas
burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com
dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor,
inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos
estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos
fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as
bases da Nação e do Estado.
A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do
futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma
utopia.
Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se
encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de
ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu
no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava
na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.
De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos
muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos
ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade
estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos.
Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não
temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.
O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre
ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele
próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme
volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas,
como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma
abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda
o que está conectado, o todo.
O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana
sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade
de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as
próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.
A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto
se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos
incerto e duvidoso.
Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se
move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a
ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo
ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.
Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.
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