Se estivesse vivo, o professor Emilio Mira y López
identificaria na realidade nacional pelo menos dois dos “quatro gigantes da
alma”, que ele radiografou no clássico da psicologia universal: o medo e a ira.
O Brasil é hoje um país dominado pelo temor do coronavírus, da ruína econômica,
da ruptura democrática, e tudo isso embalado pelo ódio político, que amplia a
turbulência e gera insegurança.
Num momento em que o amor e o respeito à pátria são
invocados para legitimar despautérios, como discursos autoritários e ataques às
instituições democráticas, vem à tona a atualidade da obra de Mira y López
escrita em 1947, depois que o autor, filho de um médico militar, vivenciou duas
grandes guerras mundiais e lutou contra o franquismo na Espanha.
“O ódio político é extremamente devastador porque pode
invocar para satisfazer-se, a cada momento, o sagrado prestigio da pátria.
Assim, basta acusar o vizinho odiado de ser “traidor da pátria” para que sobre
ele caiam os anátemas dos que são incapazes de dar a essa palavra um valor
variável, em função do marco em que é empregada”.
Professor de psicologia e psiquiatria da Universidade de
Barcelona, Mira y López, publicou um estudo cientifico pioneiro das três
emoções primárias do homem: o medo, a ira e o amor. Ele as classifica como as
três grandes reações neuropsicológicas, que somadas à força repressiva do meio
social – o dever – formam os “quatro gigantes da alma”, título da obra, uma
referência intelectual nos anos 50 e 60.
É nesse cenário em que o medo e a ira movem a política
nacional que as convocações nas redes sociais para a realização de novos atos
em defesa da democracia no próximo fim de semana, inclusive na Esplanada dos
Ministérios, acenderam o alerta entre as forças de segurança da Presidência da
República e do Distrito Federal.
Autoridades do alto escalão receiam confrontos entre
apoiadores e opositores do governo. Numa análise ampliada, o temor é de que a
tensão política, num cenário de crise sanitária e alto desemprego, desemboque
em convulsão social, com saques e depredação de patrimônio.
Alvo de ameaças – ele e seus pares do Supremo Tribunal
Federal – o ministro Gilmar Mendes alertou que é preciso “combater o discurso
do ódio” para evitar que o pior se concretize. “Tememos que essa violência
verbal se convole em violência física, isso não é bom para o país,
independentemente de quem seja o alvo”, alertou em entrevista à GloboNews.
É nesse contexto que não foi ao acaso o conselho do
presidente Jair Bolsonaro ontem aos seus apoiadores para que não repetissem os
atos no fim de semana. “Estão marcando no domingo um movimento né, deixem [os
opositores] sozinhos”.
O acirramento da radicalização política nos últimos anos,
agravado num cenário de pandemia e crise econômica, transformou o Brasil em uma
panela de pressão prestes a explodir. De um lado, o país ultrapassou a marca de
meio milhão de infectados pelo coronavírus, com quase 30 mil vítimas, segundo
dados oficiais. Em paralelo, a pobreza parece avançar na mesma velocidade da
pandemia. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad)
diz que os desempregados somam 12,8 milhões de brasileiros – o mesmo que a
população inteira da cidade de São Paulo.
Esse somatório de perdas – de vidas humanas, de emprego, de
esperança -, tendo como pano de fundo a ameaça democrática, torna-se um campo
fértil para a revolta popular.
Por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop), que reúne
29 órgãos do Distrito Federal, a Secretaria de Segurança Pública vem
monitorando as manifestações de apoiadores de Bolsonaro aos domingos, há mais
de um mês, na Praça dos Três Poderes. Sem oposição, os atos têm sido pacíficos,
embora questionáveis pela violação ao decreto que proíbe aglomerações.
Fontes da secretaria ressalvam que há um impasse legal, que
autorizaria os protestos, seja de que lado forem, porque a Constituição Federal
assegura o direito de manifestação. É essa prerrogativa constitucional que
estará em debate caso a Justiça seja acionada para proibir os protestos do
próximo fim de semana para evitar confrontos.
Vários cenários estão sendo analisados pelas forças de
segurança federal e dos Estados para evitar atos de violência no próximo fim de
semana. Um dos temores é o ressurgimento de grupos radicais como os “black
blocs”, responsáveis por ações violentas nas manifestações de 2013.
Outro receio envolve a eventual prisão da ativista Sara
Winter, apoiadora do presidente, que fez ameaças públicas ao ministro do STF
Alexandre de Moraes e é investigada pela Polícia Federal. Há dúvidas se a sua
detenção teria o efeito de advertência para conter os excessos dos demais
ativistas, ou acirraria os ânimos dos bolsonaristas.
Outro temor é de que os protestos antirracistas que ocorrem
há uma semana nos Estados Unidos – e ganharam ampla cobertura da imprensa
brasileira -, contra o assassinato de George Floyd, estimulem os protestos
nacionais.
No limite, há quem arrisque que restará ao governador
Ibaneis Rocha (MDB) imitar o seu antecessor, Rodrigo Rollemberg (PSB), que
ergueu um muro de dois quilômetros de extensão nos gramados da Esplanada para
dividir os grupos adversários no impeachment da presidente Dilma Rousseff em
2016 e evitar as vias de fatos entre os dois grupos.
Mira y López ficou conhecido como o “teórico da liberdade”:
exilado após a luta contra o regime de Franco, ele viveu nos Estados Unidos,
Argentina e Uruguai, até radicar-se no Brasil, onde faleceu em 1964, em plena
ruptura democrática.
Ele não se conformava com a radicalização política, porque para ele esse ódio esbarrava na essência da atividade política, que deveria ser “modelo de tato, compreensão e respeito ao ser humano”. Sua conclusão foi de que o ódio político remonta à tendência do homem, “desde sua mais remota ancestralidade”, a ambicionar o poder, “não para servir, mas para dele se servir”.
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