Não é de hoje que números redondos são ferramentas
infalíveis para atrair leitores, concentrar homenagens, turbinar emoções. Não
fosse a pandemia que imobiliza este 2020 fantasmagórico, o 250º aniversário do
nascimento de Beethoven e os festejos pelos 75 anos do final da Segunda Guerra
na Europa seriam mais tonitruantes. Basta comparar com o passado recente: em
2019 o mundo se entregou a comemorações voluptuosas pelos 50 anos de Woodstock,
os 30 anos da Queda do Muro de Berlim, e tantos outros marcos históricos.
Em tempos de coronavírus, números redondos também são ferramenta
de primeira linha, só que às avessas — eles nos arrancam do torpor de um amanhã
incerto. Sabidamente o medo que mais imobiliza o ser humano é o medo de ver o
que está à sua frente. Isso inclui o presidente da República. Para Jair
Bolsonaro, cada novo número-choque da pandemia no Brasil tem impacto dobrado,
pois atesta sua falha histórica como governante da nação em tempos turvos.
Na linha desse tempo pandêmico o mundo mal teve tempo de
atravessar o choque do primeiro milhão de infectados. No momento rumamos para
10 milhões mundo afora, e logo mais a régua terá de ser levantada. Na manhã da
última sexta-feira dados apontavam para 55.304 mortos no Brasil. Portanto nova
barreira redonda derrubada, com a anterior (50 mil) já esquecida.
Como nossas mentes dificilmente registram o número por
inteiro, é mais provável que em conversas de quarentenados tenhamos arredondado
para 55 mil. Em textos jornalísticos ou legendas noticiosas, o número completo
acaba encurtado para “mais de 55 mil”. Ou, “55,3 mil”. Acabam ficando de fora
do nosso imaginário as chamadas “sobras da guerra” — no caso, os 4 últimos
dessas 55.304 vidas perdidas para a Covid. É natural: quem pensa nos centavos
diante de um cheque de 10 mil reais, certo?
Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto
individual, exceto quando ele nos atinge de perto. A morte em massa se torna a
soma de vidas anônimas tragada por essa avalanche. Só que, ao contrário do que
ocorre em furacões, terremotos ou guerras, a mortandade por pandemia é
condenada ao silêncio. E esta, em particular, parece não ter fim.
Na Guerra do Vietnã, onde morreram 58.209 G.I.s, foi fácil
levantar a identidade dos dois últimos soldados americanos a não voltarem para
casa. Um se chamava Charles McMahon, estava prestes a completar 22 anos e
desembarcara em Saigon 11 dias antes de morrer. O outro, Darwin Lee, de 19
anos, também era novato na guerra que durou 7 anos. Ambos tinham por missão
proteger a Embaixada dos Estados Unidos. Morreram juntos na manhã do 29 de abril
de 1976, atingidos por um foguete. No dia seguinte, a guerra acabou, Saigon foi
tomada pelos comunistas, e o que restava de presença americana bateu em
retirada afoita. Inglória das inglórias, os corpos de McMahon e Lee foram
deixados para trás. Só conseguiram ser recuperados um ano mais tarde por
mediação da diplomacia.
Historiadores da Segunda Guerra Mundial também puderam
cravar a identidade do último soldado das tropas aliadas a morrer no front
europeu: Charles Havlat, 34 anos. No dia 7 de maio de 1945 seu pelotão avançava
na região da Tchecoslováquia quando sofreu emboscada de uma divisão de tanques
alemães. Fatalidade: nove minutos antes fora negociado o cessar-fogo que
levaria à rendição incondicional da Alemanha, comemorada em 8 de maio.
Difícil imaginar que pesquisadores do futuro conseguirão
identificar a última vítima da pandemia de Covid-19 no Brasil. Isso porque, por
trás de números tão monumentais, se escondem várias causas mortis. Inclusive a
falta de medicamentes críticos em várias UTIs do país. O estoque de 22 insumos
indispensáveis para pacientes que precisam ser intubados (sedativos,
anestésicos, bloqueadores neuromusculares) está à míngua em 21 hospitais de
referência, aponta um levantamento nacional divulgado esta semana. Sem esses
medicamentos, o paciente não morre de Covid, morre por não poder ser intubado.
Também pode morrer por ter desistido de entender o
emaranhado de protocolos de segurança e reclassificações de atividades.
Desistido de aguardar o auxílio emergencial do governo, desistido
de se proteger. O método universalmente reconhecido como o mais simples e
barato — o uso de máscara — é sabotado pelo presidente da República. Como levar
a sério um protocolo municipal que libera viagens de pé em ônibus mas limita a
ocupação no interior do veículo em 2 pessoas por metro quadrado? Isso, na
cidade do Rio de Janeiro! O efeito sanfona das medidas de flexibilização
desnorteia mais do que disciplina, a lição primeira de lavar as mãos com sabão
não serve para os mais de 100 milhões de brasileiros hoje ainda expostos ao
esgoto a céu aberto.
Em resumo, no Brasil de 2020 ainda vai se morrer muito durante a Covid-19. Sobras desnecessárias da soma de irresponsabilidades nacionais.
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