Com todos os atropelos que traz à privacidade do cidadão, o
projeto de lei aprovado pelo Senado esta semana e apelidado de “Lei das Fake
News” poderá ser melhor para a democracia do que não fazer coisa alguma. A
chance dele vingar, contudo, é muito pequena, quase nula, dada a forma como
passou.
Os que criticam a proposta munidos de boa fé deveriam se
sentir motivados a apresentarem uma alternativa política plausível ao parecer
do senador Angelo Coronel. Pode ser que ainda o façam, já que há discussões na
Câmara que devem levar a uma revisão profunda do projeto. A ver.
Não há pior situação do que a atual, em que o fenômeno das
“fake news” corrompe o sistema democrático não apenas no plano institucional,
enganando legiões na hora do voto, mas no universo de direitos: a convivência
entre diferentes é minada e até questões que afetam a sobrevivência da espécie,
como o combate à pandemia ou a preservação do meio ambiente, têm o debate
desvirtuado.
O direito à privacidade e à liberdade de expressão não pode
se sobrepor a regras que garantam a existência da vida em sociedade. É o
paradoxo de Karl Popper: a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da
tolerância.
O debate sobre o projeto produziu até o momento uma coalizão
tão insólita quanto involuntária. Combatem a proposta tanto expoentes do
libertarianismo digital quanto os ferrabrazes do bolsonarismo, muitos dos quais
alvos do inquérito que cursa no Supremo Tribunal Federal.
Faltou ao Senado a percepção de que era preciso negociar mais o texto para se
desmanchar esta frente. Transferir a responsabilidade de fazer esta negociação
para a casa revisora – no caso em questão a Câmara – e levar a voto a proposta
com tamanho grau de dissenso foi um erro, porque vai atrasar a tramitação no
Legislativo já que, alterado, o texto terá que voltar para o exame dos
senadores.
Os fomentadores de “fake news”, os que fazem da mentira um
método de ação política, jogam nesta questão com o tempo. Enquanto o impasse
permanecer, a liberdade de expressão e o direito à privacidade estarão
resguardando um mundo paralelo que prega contra vacinas, diz que o desmatamento
não aumentou, que não houve ditadura militar, que a Lava-Jato foi uma
conspiração do governo americano, que há um plano da China para dominar o
pensamento acadêmico brasileiro e por aí vai. E esses são os exemplos mais
suaves, porque o que corre nas redes sociais é mais pesado: vai na pessoa
física, visa destruir o oponente, desmoralizando-o.
Veterano no acompanhamento da cena política, o presidente do
Conselho Científico do Ipespe, Antonio Lavareda, mostra-se alarmado. “O Brasil
soube administrar bem a corrupção no sistema eleitoral. Com todos os problemas
que acarretou a nova norma, a proibição de doação de empresas a candidatos
conteve o problema. Agora o vírus que ameaça à política está nas redes sociais.
É melhor pecar por excesso do que ceder a um principismo ingênuo.” Em resumo,
“o risco que as fake news representam impõem o sacríficio de algumas
liberdades. Não há direito absoluto”, comenta.
O debate a ser feito, portanto, é até que ponto deve-se
abrir mão de determinados direitos (privacidade e liberdade de expressão) para
a preservação social. Esta é a dimensão da decisão que a Câmara deve
encaminhar.
A polarização política muito potencializada pelas redes já
cobrou a fatura no filtro que o brasileiro busca ao se informar. A internet
tornou-se a porta da entrada da informação, sem ter os mecanismos de
autocontrole que existem em todas as plataformas tradicionais de mídia.
Segundo uma pesquisa comparada da Reuters em parceria com a
Universidade de Oxford, com 2.058 entrevistas, feitas entre janeiro e fevereiro
deste ano, nada menos que 43% dos pesquisados no país preferem ler notícias de
fontes que compartilhem o seu ponto de vista. Nos Estados Unidos, onde a
penetração da internet é maior e a polarização política é enorme, a proporção é
de 30%. No Reino Unido, 13%.
Já os que preferem ler noticias imparciais no Brasil somam
51%, ante 65% na Itália e 80% na Alemanha. Entre 2013 e 2020, o percentual que
se informa por meio do jornal impresso recuou de 50% para 23% e pela televisão
caiu de 75% para 67%. Já os que consomem notícias por redes sociais subiram de
47% para 67%. Fica patente que o Brasil é uma terra fértil, em que se plantando
tudo dá.
Eleição
A eleição deste ano tem tudo para entrar para a história política
brasileira como uma completa anomalia, não apenas por ser a primeira a
acontecer em novembro desde 1989. O palanque eletrônico se converterá no único
possível. A campanha se desenrolará em clima de absoluto desinteresse, porque é
incontroverso que a pandemia monopoliza a atenção. De quebra, passou a vigorar
a regra que proíbe coligações eleitorais, o que estimula os partidos a lançarem
chapa completa nos grandes centros.
Para Lavareda, a televisão volta a ter um papel central no
processo político, mais do que exerceu em 2018, com a população confinada em
suas casas. “Isso vai acontecer não apenas por causa do horário eleitoral, mas
porque a TV ganhou credibilidade com a pandemia.”
Bolsonaro não terá partido, mas será impossível o
bolsonarismo não estar presente na disputa. No cardápio das opções locais,
haverá o candidato que vai procurar colar na imagem do presidente para captar a
simpatia de seus irredutíveis apoiadores. E os seguidores do presidente
estabelecerão suas afinidades eletivas.
Dificilmente, contudo, a nacionalização da eleição será uma marca este ano. A campanha em confinamento tolhe a oposição aos prefeitos. Se o administrador local conseguir driblar a penúria financeira, – algo que ficou mais fácil, com a negociação estabelecida no Congresso – as chances de superar os problemas causados pela catástrofe sanitária são grandes. Largam em grande vantagem.
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