Circunscrito a um reduzido círculo de conhecimentos
(infestado de ineptos, inaptos e bandidos) e à mercê das preferências de dois
grupos de pressão superficialmente conflitantes – os militares e os olavistas –
Bolsonaro continua fazendo as escolhas mais calamitosas inimagináveis. Além do
dedo podre, repito, não tem quadros.
A cada ministro ou secretário demitido, ninguém mais se
pergunta “quem será o sucessor?”, mas “que outro estupor ele irá convidar?”. Um
estrupício caitituado pela militância ou sugerido pela milicância, favorecido
pela ala ideológica ou pela ala verde-oliva? Essa distinção em alas, aliás, é
uma lereia. Por que só alas e não facções e grupelhos? Ala, só a das baianas;
mais respeito com elas e o carnaval.
Deveria ter soado alvissareira a escolha do professor Carlos
Alberto Decotelli. Não fora indicado pelos apparatchiks da ultradireita da
Virginia, parecia homem sério, preparado e equilibrado, um antípoda do
Weintraub. A negritude, até então apenas representada no governo por Hélio
Negão, um Lothar sem Mandrake, noves fora o défroqué noir Sérgio Camargo,
também contava a seu favor. Afinal seria o primeiro afrodescendente alçado a
ministro da Educação desde a criação do ministério na República Nova. Acabou
sendo, coitado, o único ministro da Educação demitido antes de tomar posse.
Mesmo convicto de que qualquer pessoa se desmoraliza ao
aceitar integrar o atual governo, torci para Decotelli conseguir provar os
doutorados e distinções que dizia ter.
É que sua figura me trouxe à lembrança um professor de Latim
do Colégio Pedro II, José Pompílio da Hora, sujeito preparadíssimo, também
mestre em grego, filosofia e história, formado em direito pela Universidade de
Nápoles, daí o leve sotaque italianado que nunca perdeu e lhe conferia um ar
meio solene, quase pedante.
Pompílio da Hora era negro e por duas vezes no início da
década de 1950 teve sua entrada no Itamaraty frustrada pelo que então chamavam
de “preconceito de cor”. Não guardou rancor, nem se entregou à autocomiseração.
Esse episódio de racismo marcou minha adolescência, de maneira indelével, como
se pode notar.
Prof. Pompílio protegia descaradamente as meninas da turma,
descascava os rapazes, e me fez decorar e traduzir, de castigo, os primeiros
versos da Eneida (“Arma virumque cano…”, canto as armas e o varão), enquanto
lubrificava a garganta com pastilhas Valda, seu único vício público. Pensei
nele, no racismo do Itamaraty e só fui deixar de torcer pelo ministro Porcina
(aquele que foi sem nunca ter sido) ao assistir àquela fatídica entrevista que
ele deu à Globo News no início da semana.
Achei-o antipático, presunçoso, pernóstico e enrolador.
Cheguei a desconfiar que a mídia o estivesse tratando com mais rigor que o
dispensado aos cascateiros brancos do governo (Ricardo “Yale” Salles, Damares,
o próprio Weintraub), com seus turbinados currículos acadêmicos, mas, em vez de
ficar ruminando sobre um eventual viés racista da imprensa (e da Fundação
Getúlio Vargas) em relação a Decotelli, preferi assuntar a presença dos negros
na carreira diplomática e o comportamento deplorável de antigos ministros da
Educação.
Nosso primeiro embaixador negro, Raimundo Sousa Dantas, foi
uma ousada invenção de Jânio Quadros. Sua nomeação para representar o Brasil em
Gana (África), em 1961, gerou resistência entre diplomatas e intelectuais
brasileiros. Se hoje ainda só temos 5% de negros na carrière, assim mesmo
graças a uma política de cotas e bolsas de estudos relativamente recente,
imagine 60 anos atrás. Hoje Pompílio da Hora seria até embaixador, como Jackson
Luiz Lima Oliveira, que já nos representou em Zâmbia e na Nigéria, e conhece a
fundo a influência do racismo estrutural no Itamaraty.
Como teria sido Decotelli à frente da Educação é curiosidade
que jamais será satisfeita. Pior do que seus dois antecessores (Ricardo Vélez
Rodriguez e Abraham Weintraub) não seria, mas não consigo imaginá-lo ao nível
do que Ney Braga e Eduardo Portella, sobretudo o segundo, conseguiram ser no
governo Geisel.
É possível entender as razões do estado deplorável do
ensino, e não só do ensino, no Brasil pela trajetória dos que assumiram o
ministério da Educação desde sua criação em 1930. Seu primeiro ocupante,
Francisco Campos, foi quem redigiu, em 1937, a Constituição do Estado Novo e,
em 1964, os dois primeiros atos institucionais da ditadura militar.
Em 20 anos de ditadura, tivemos 10 ministros da Educação e
dois interinos, nenhum naturalizado (como o colombiano Vélez), nem palhaço
(como Weintraub), uns mais, outros menos afinados com os “ideais
revolucionários” do regime. Os quatro primeiros (Luiz Antônio da Gama e Silva,
Flávio Suplicy de Lacerda, Moniz de Aragão e Tarso Dutra) foram de lascar.
Gama e Silva ganhou o cargo pela limpeza ideológica que
fizera, quando reitor da USP, banindo de seu corpo docente os professores
Florestan Fernandes, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando
Henrique Cardoso e outros “esquerdistas”. Quatro anos depois poria sua
sapiência jurídica a serviço da redação do AI-5.
Suplicy de Lacerda notabilizou-se por um acordo de
cooperação do MEC com a Agência de Desenvolvimento dos EUA (Usaid), que visava
transformar o ensino brasileiro num projeto tecnocrático e foi levado adiante
por Tarso Dutra, que pegou pela proa as revoltas estudantis de 1967-69, motor e
flecha da Passeata dos 100 Mil e outras decisivas manifestações de repúdio à
ditadura. Por ser jurista, como Gama e Silva, encarregaram-no de revisar o
texto do AI-5.
Não podia dar muito certo um ministério historicamente mais preocupado com a repressão do que com a educação.
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