A pandemia faz aflorar a sensação plena de nossas
contingências e fragilidades. Integramos agora, independentemente de nossa
origem, cor, condição social, sexo, religião ou time de futebol, uma mesma
categoria: potenciais vítimas da covid-19.
Tal importa em visitar e praticar o valor solidariedade
social, fruto da consciência viva de dependermos cada qual do outro. Assim,
cooperamos com o nosso próximo, esperando que ele também colabore conosco,
para, em irmandade, juntos, superarmos o inimigo comum.
A noção de planetário pertencimento à nova categoria de
potenciais vítimas do vírus desfaz eventual sensação de ser o outro um inimigo,
uma fonte de desgraça, pois todos somos, sem o querer, concomitantemente,
destinatários ou transmissores do mal. Esta recém-experimentada condição, que
nos retira de nossas atividades habituais, impõe a humildade de reconhecer que
se deve aos demais a atenção de cuidados para protegê-los.
O pertencimento a uma situação geral perigosa deve unir, e
não confrontar, fazendo surgir espírito comunitário, a ser vivido na rua, no
prédio de moradia, no supermercado, nos ônibus, consistente no respeito à vida
de todos, mesmo porque a proteção dos circunstantes também significa a defesa
de si mesmo.
Todavia não é o que se está a verificar em parcela da nossa
sociedade, ao negar o valor da solidariedade e se arvorar imune à peste, para
por comodidade ou arrogância desrespeitar a vida alheia e não colaborar com o
bem comum.
Já Oliveira Vianna (Instituições Políticas Brasileiras, José
Olympio editor, 1949, pág. 132 e seguinte), estudando a formação cultural do
Brasil, anotava ser absolutamente nula a solidariedade social entre nós,
havendo apenas pequenos traços de solidarismo local sem nenhuma significação
geral, concluindo: “O brasileiro é fundamentalmente individualista”.
Há na rejeição ao uso da máscara recusa a se submeter a
qualquer regulamentação, configurando uma regressão ao estado da natureza, em
termos de Hobbes, ao se impor a própria vontade sem responsabilidade social e
sem controle de si mesmo, a ponto de se permitir lesionar quem exige respeito
às normas sanitárias.
Causa indignação um ex-presidente do Tribunal de Justiça e
outro desembargador, do alto de sua prepotência, afrontarem a legítima
regulamentação por decreto autorizado por lei federal, para se negar a usar
máscara como o comum dos mortais. O que mais espanta, todavia, é a violência da
reação ao se ser cobrado a cumprir a regulamentação e a regra moral da
solidariedade. O desembargador, ao rasgar e jogar no chão a multa, ultrapassou
a linha da contestação para atuar com agressividade.
Esta violência assusta ainda mais quando se verifica que
pessoas comuns, sem nenhum desvio pregresso de conduta, reagem violentamente
quando questionadas por estar sem máscara.
Podem ser colhidos diversos exemplos de norte a sul do País.
Em Belo Horizonte, motorista de ônibus negou-se a transportar três pessoas sem
máscara, que é obrigatória na capital mineira. Ainda tentou explicar não dever
pôr em risco a vida de todos os passageiros, mas foi inútil: a mulher, ao
descer, o estapeou-o no rosto (www.g1.globo.com/minas-gerais/noticia/20/07/20).
.
Em Alagoas um cidadão repreendeu policial militar aposentado
por não usar máscara. O policial derrubou-o, chutou-o e agrediu-o, mesmo
deitado, gritando: “Usa máscara quem quer!”
(diariodopoder.com.br.brasil-e-regioes/alagoas/policial). Na cidade de Catalão,
em Goiás, dono de bar idoso foi agredido e teve a perna quebrada por um cliente
ao ser-lhe pedido que usasse máscara
(www.noticias.uol.com.br/cotidiano/2020/06/29).
Mais outra: homem entrou sem máscara em supermercado em
Vacaria (RS) e ao ser advertido pelo gerente, na discussão, esfaqueou-o
(Estado, 21/6). Também na cidade de Registro, sul do Estado de São Paulo,
policial foi agredido por empregados de loja após solicitar que usassem
máscara. O policial lesionado disse ter sido “degradante a situação, pois
queria a proteção deles e dos demais e por cobrar essa preocupação” foi
agredido” (www.jornaldebrasilia.com.br/nahorah/policial). .
O que desencadeia essa violência de pessoas normais em face
de simples pedido de respeito às normas sanitárias durante uma pandemia,
obrigação óbvia como medida de solidariedade social?
Além do insolidarismo vigente em nossa cultura, “se farinha
pouca, meu pirão primeiro” (Bezerra da Silva), há evidente nexo de causalidade
entre o mau exemplo que vem de cima e o exercício prepotente e agressivo da
população ao ser cobrada pelo não uso de máscara
(oglobo//globo.com/sociedade/especialistas-explicam). Se o presidente da
República profere o insolidário “E daí?” e vai a bar, barraca de cachorro
quente, aglomeração contra o Congresso e o Supremo, sem máscara, cujo uso
ridiculariza, com que autoridade se exige esse uso com ares de reprovação?
É uma vertente do “sabe com quem está falando?”. Está
falando com um súdito do presidente.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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